quarta-feira, 15 de maio de 2013

Tragédia de Bangladesh expõe descaso com mulheres, vitais para o país

Dos escombros de uma fábrica de roupas localizada nos arredores de Dacca, capital de Bangadlesh, centenas de corpos de mulheres são trazidos à luz, seus sáris e vestimentas coloridas contrastando com a palidez da morte. Enquanto isso, ainda na capital do país, extremistas islâmicos queimam ônibus, saqueiam lojas e atacam policiais. Sua principal exigência: um estado islâmico, no qual as mulheres viveriam separadas dos homens.

A ironia dessa situação é o fato de as mulheres serem as responsáveis por gerar recursos vitais para Bangladesh (a indústria de vestuário do país, cuja maioria esmagadora da força de trabalho é composta por mulheres e movimenta US$ 19 bilhões por ano, é a principal fonte de renda do país). São as mulheres que dão duro para sustentar muitas vidas além de suas próprias. São as mulheres que carregam o peso do péssimo desempenho do país em relação às práticas de segurança do trabalho.

Durante mais de duas décadas, duas mulheres se alternaram na liderança política do país. E, ainda assim, esse país, a minha terra natal, continua em falta com suas mulheres.


Os radicais islâmicos também estão exigindo que "blogueiros ateus" sejam enforcados. Os manifestantes, muitos dos quais nunca acessaram a internet, compilaram uma lista com 84 blogueiros que eles desejam ver executados. Mais nomes deveriam compor essa lista, mas o blogueiro Rajib Haidar já foi retalhado até a morte. Asif Mohiuddin, outro blogueiro, foi esfaqueado.
Inspirados pelos blogueiros, centenas de jovens foram às ruas para protestar contra o extremismo. Mas, nesse processo, eles desencadearam seu próprio extremismo: eles querem a pena de morte para todos os acusados por crimes de guerra. Aqui também reside a ironia: não ocorreu a eles que os direitos humanos se aplicam tanto aos culpados quanto aos inocentes, e que mesmo o pior dos criminosos merece um julgamento digno e dentro dos preceitos legais.

O que dizer da classe política? Em uma medida calculada mas perigosamente míope, o principal partido da oposição está se aliando aos radicais islâmicos. O governo, por sua vez, está dizendo uma coisa e fazendo outra: ele anuncia políticas para estimular a igualdade de gênero, mas deixa intactas as leis discriminatórias. Condena o extremismo islâmico, mas prende quatro dos blogueiros (incluindo Mohiuddin) e acusa um editor de jornal de "instigar ideias negativas contra o Islã".

E o governo não faz nada para coibir a corrupção desenfreada que coloca a vida de milhões de trabalhadores em risco, seja através de construções de má qualidade ou do desrespeito pelas normas de segurança. E enquanto a contagem de corpos em Rana Plaza chegava a 1.000 cadáveres (posteriormente, essa contagem chegou a 1.127), outra fábrica têxtil foi incendiada. Oito pessoas ou mais morreram.

O abismo de distância

Ao longo de uma vida inteira atuando na defesa dos direitos humanos, eu tenho visto a fragmentação e a diversificação do discurso, à medida que as sociedades e as comunidades ganham complexidade. Direitos políticos. Direitos das mulheres. Direitos trabalhistas. Essa abordagem pode ajudar a mobilizar os eleitores, mas não reflete a maneira por meio da qual os direitos se sobrepõem uns aos outros, se alimentam uns dos outros, avançam e recuam juntos.
Em Bangladesh, essa conexão nos olha diretamente nos olhos: os direitos trabalhistas estão conectados aos direitos das mulheres, os direitos das mulheres das mulheres à liberdade de religião, a liberdade de religião à liberdade de consciência, a liberdade de consciência à liberdade de expressão. A liberdade dos blogueiros para escrever o que quiserem. A liberdade das mulheres – e dos homens – para poderem trabalhar sem temer por suas vidas.
Os direitos humanos são universais: será que hoje Bangladesh possui a visão, a coragem e a vontade política para se comprometer totalmente aos direitos humanos como fez no momento de sua independência, há quatro décadas? Em 1971, os habitantes do meu país lutaram não apenas pelos religiosos, mas também por aqueles que não tinham religião. Em 1971, nós lutamos para acabar com a discriminação não apenas contra a nossa própria etnia, mas também contra o nosso gênero. Em 1971, nós lutamos por direitos para todos.

Mas atualmente os habitantes de Bangladesh não contam com direitos para todos. A tragédia de Rana Plaza e o surto de violência islâmica fazem parte de um encadeamento de males, alimentados pela corrupção, pelo oportunismo político e pelo desrespeito aos direitos humanos universais. Quando apenas os meus direitos são levados em conta – e não os dos outros –, nenhum direito humano está seguro.

Texto de Irene Khan, para o International Herald Tribune, reproduzido no UOL. Tradução de Cláudia Gonçalves.

Nenhum comentário:

Postar um comentário