Antecipo as homenagens pelo centenário de Ignácio Rangel, que será em fevereiro de 2014. Faço isso porque nas últimas semanas distintos temas tratados neste espaço fazem lembrar dele, em especial sua capacidade de aliar uma criatividade aguda para elaborar conceitos com um senso de realidade raro entre economistas.
Uso textos como "O papel da inflação", publicado na Folha de 30/07/1990, indicação do economista Thiago Mitidieri, com quem discuti sobre Rangel.
Nos anos 30, Rangel entendia que a industrialização precisaria vir junto com a reforma agrária. Mais tarde, reconheceu que no Brasil a industrialização, se não fosse um projeto de lideranças dos proprietários rurais, teria sido natimorta.
No entanto, isso não ocorreria sem graves problemas. A mecanização do campo sob uma estrutura fundiária concentrada jogaria muitas pessoas nas cidades, sem que houvesse ocupação suficiente na indústria e nos serviços para absorvê-las, o que favoreceu a repressão salarial, travando o adensamento do mercado interno, o motor da industrialização brasileira.
Avançar na industrialização --dos bens leves para os de consumo duráveis e daí para a indústria pesada-- era o jeito de continuar criando perspectivas. Porém os avanços ocorriam por saltos na estrutura produtiva em ciclos mais ou menos decenais, prósperos na primeira metade e recessivos na outra.
Não era tarefa fácil. Havia capacidade ociosa, por conta das grandes economias técnicas de escalas, e também estrangulamentos produtivos, fruto de desequilíbrios próprios de uma mudança estrutural e de restrições de divisas externas.
A inflação tinha até os anos 60 um comportamento inesperado, se intensificando na recessão. Os baixos ganhos salariais faziam a demanda agregada no Brasil ser estruturalmente deprimida, pois dependente do investimento.
Para Rangel, a inflação tinha outra fonte de aceleração: uma estrutura de mercado cartelizada, que elevava seus lucros espremendo tanto os consumidores finais quanto os produtores, em especial nos bens agrícolas. Como a procura de alimentos é pouco elástica, o aumento de seus preços fazia cair o consumo de outros bens pelos assalariados, aprofundando a recessão.
Mas a inflação era útil. Ao penalizar a liquidez, incentivava imobilizações --tanto pela antecipação da compra de bens duráveis pelos mais ricos quanto em investimentos incrementais-- quando um ciclo de mudança estrutural dava sinais de excesso de capacidade.
Essa imobilização especulativa mitigava a recessão e permitia alinhar as condições institucionais e o planejamento dos investimentos que fariam parte da nova fase de expansão industrial.
Rangel não vituperava contra a inflação, mas tampouco aderiu a ela, sabendo que seu papel foi circunstancial. A retomada do desenvolvimento viria pela realização de aperfeiçoamentos institucionais que o novo status de nação industrial exigia. Para isso, o capital financeiro precisava se integrar ao industrial, o que permitiria melhor coordenar os investimentos, algo que o país ainda está longe de ter.
Também estava claro que a capacidade de expandir a infraestrutura por meio de empresas públicas tinha se esgotado. Rangel tinha apontado nos anos 60 que esse modelo era útil, mas esbarraria na limitação de endividamento da União, o que ficou patente no início dos anos 80. Então, era preciso regenerar os sistemas de garantias, o que envolvia mudar o direito das concessões e realizar privatizações.
Hoje, a infraestrutura no Brasil se expande por meio do "project finance", em que sociedades de propósitos específicos, com controle privado, financiam os projetos com base na receita esperada. Nisso, a ideia de Rangel vingou.
Rangel não se furtava a mudar de posição, mas sem trocar uma crença idealizada no desenvolvimentismo e na cooperação por outra igualmente idealizada no liberalismo e na competição. Ele se manteve de esquerda e heterodoxo.
Isso não o impediu de transigir em questões concretas, defendendo que a industrialização, para se viabilizar, precisou da elite agrária e que a inflação não era um mal absoluto. Quando o projeto industrial mostrou sinais de esgotamento, defendeu as privatizações, antes de elas virarem uma efetiva bandeira liberal.
É possível discordar de Rangel em vários pontos, mas, houvesse mais economistas como ele, a economia avançaria bem mais, tanto como teoria quanto na política.
Texto de Marcelo Miterhof, publicado na Folha de São Paulo.
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