Por sorte, não perdi "Depois de Maio", de Olivier Assayas.
Nas últimas semanas, eu tinha visto o trailer repetidamente, e imaginava que o filme me aborreceria com um amontoado de chavões ideológicos, ou seja, daquelas frases que, em Maio de 1968, estofavam nossos peitos e, hoje, são inertes, quase desprovidas de sentido.
Ora, tanto na nossa vida quanto na história coletiva do século 20 e 21, Maio de 68 e os anos 1970 foram muito mais do que as convicções e as palavras de ordem da luta política.
Claro, na época, nada nos parecia mais importante do que o sucesso ou o fracasso daquelas convicções. Mas fazer o quê? Foi assim: saímos à rua para fazer uma revolução e acabamos fazendo outras, que não eram previstas, mas talvez fossem melhores do que a que tínhamos planejado.
Não estou falando da revolução nos costumes e na tolerância das diferenças. Falo de outra revolução ainda, que, nos últimos anos, começou a ser contada, indiretamente, nos filmes que tratam de Maio 68.
Os melhores, para mim, eram "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci, e "Amantes Constantes,", de Philippe Garrel. Agora há "Depois de Maio", de Olivier Assayas, que não é apenas o filme sobre Maio que mais me tocou até hoje. É também um dos filmes (sobre Maio ou não) que mais me tocaram nos últimos anos.
Assayas é mais jovem do que eu. Eu tinha 20 anos em 68; ele tinha 13. Mas ambos fomos jovens nos anos 1970 na França; eu estava, por exemplo, nas manifestações de setembro de 70, durante a greve de fome de Alain Geismar.
Há uma pergunta que se colocam quase todos os que viveram "de dentro" Maio 68 e os 1970: o que eu fiz que, assim como eu sou hoje, eu não faria? E ter me transformado, isso é bom ou ruim?
No filme "Depois de Maio", é citado um grande poeta beat dos anos 1950. Em "Gasoline", de Gregory Corso, há um poema ("Tenho 25 Anos"), em que, depois de evocar os poetas que morreram jovens (Shelley, Chatterton, Rimbaud), Corso declara que ele odeia os velhos poetas, "especialmente os que se retratam" e que contam sua juventude sussurrando: "Eu fiz aquilo então, mas isso foi então"¦".
Desses velhos poetas, Corso quer arrancar a língua fora, para que parem de se desculpar.
Será que sou um desses velhos poetas? Vistos de hoje, aqueles dias me parecem uma comédia de erros? E, se não foram, qual foi seu valor?
É que aqueles dias e anos inventaram um novo hedonismo da vida (que talvez já tenha sido perdido, de novo): era um prazer de viver, mas cuidado --levando a vida extremamente a sério. Esse prazer tinha a ver com o quê?
Por exemplo, com uma custosa fidelidade ao desejo da gente, que fosse de ser pintor, militante ou perdido nas drogas.
Ou ainda, com uma extraordinária densidade cultural, uma raiva de ler e estudar, como se colocar as questões certas fosse a condição para viver a vida intensamente.
Em 1970, num seminário de literatura inglesa contemporânea, na Universidade de Genebra, cada estudante foi convidado a apresentar um autor preferido. Escolhi Gregory Corso. No meio da exposição, me empolguei e confesso que atribui a Corso, como se fossem dois versos de um poema dele, as primeiras linhas (memoráveis) de um romance de espionagem de Len Deighton, que eu acabava de ler.
Por sorte minha, ninguém parecia conhecer nem Corso nem Deighton, e não fui desmascarado.
O começo de "An Expensive Place to Die", de Len Deighton ("O Preço da Morte", Nova Fronteira), tinha se tornado meu hino pessoal à vida que se justifica por si só, pela aventura que ela é.
Deighton começa assim: "The birds flew around for nothing but the hell of it" (o sentido é: os pássaros voavam pelo céu pelo puro prazer de voar --mas em inglês é muito melhor).
O filme de Assayas fala do prazer da vida levada a sério em duas sequências magníficas e surpreendentemente longas: a abertura, com os estudantes fugindo de um ataque da polícia, e uma pichação noturna, também com fuga dos estudantes perseguidos pelos vigias.
Nessas cenas, há o fôlego dos estudantes e dos policiais, que correm, há o fôlego do cineasta que consegue manter a sequência, há o fôlego dos espectadores e há, enfim, mais um fôlego, do qual talvez todos precisemos: é o fôlego de se levar a sério, ou seja, por exemplo, de ousar ir às ruas, pelo prazer de declarar o que a gente pensa, desafiando o medo.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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