quarta-feira, 29 de maio de 2013

A lei islâmica ameaça a faixa de Gaza


Silenciosamente, o Hamas voltou a pôr à prova a paciência dos moradores da faixa de Gaza. Um grupo de parlamentares afiliados a esse movimento propôs no início do mês, no Conselho Legislativo, um novo Código Penal de acordo com a sharia, ou lei islâmica. Em suas partes cruciais, propõe instaurar o castigo islâmico, com a amputação da mão direita por roubo e o chicoteamento por ofensas sexuais, e ficam eximidos de represálias aqueles que cometerem crimes se esses servirem para defender a imposição da própria sharia.
Seria um passo decisivo na islamização da Faixa, que não passou despercebido aos moradores laicos e moderados que ainda têm fé em uma reconciliação com a classe política que governa na Cisjordânia para pôr fim a essas incursões no extremismo.
Nos maltratados edifícios da cidade de Gaza, se observam nestes dias numerosas bandeiras amarelas da Fatah, o partido laico do presidente Mahmud Abbas, que foi expulso da faixa depois de uma guerra civil, há seis anos. Ele governa agora a Cisjordânia, enquanto Gaza ficou sob o controle do Hamas. As recentes pesquisas realizadas na faixa de Gaza sugerem que Abbas e a Fatah ganhariam terreno nas eleições, em detrimento do grupo islâmico.
Semanalmente, um grupo de moradores de Gaza se manifesta diante do Parlamento em favor da reunificação palestina. "O Hamas está tratando Gaza como se fosse seu feudo e propõe leis que afetam de forma negativa as mulheres e aqueles que não creem em sua forma de ver a vida", dizia em uma dessas concentrações, na terça-feira passada, Tahrir Al Haj, 45.
Al Haj, membro do Conselho Revolucionário da Fatah, é proibida pelo Hamas de viajar, seja para a Cisjordânia ou o Egito. Cobria seu cabelo com um véu, mas acredita que isso é algo que a própria consciência deve ditar, e não o governo. Ao seu lado, o jornalista Fathi Tobail, 59, estava proibido de cobrir a manifestação. Trabalhava para a Wafa, a agência de notícias da Autoridade Palestina, proibida em Gaza. Em novembro, ele foi preso. "O Hamas veio e me deteve. Acusaram-me de conspirar com as autoridades de Ramallah. Ocuparam meu escritório e o destruíram. Agora não posso trabalhar, por simpatizar com a Fatah. Os que pensam como eu são presos e interrogados, mas nunca nos enviam a julgamento. De que iriam nos acusar?", diz.
Aqueles que, como Al Haj e Tobail, não simpatizam com o Hamas detectam nestes dias um padrão no comportamento político do grupo islâmico: quando quer uma mudança, apresenta uma reforma por via legislativa ou executiva, ou nas ruas, através da polícia. Se não houver queixas, a medida fica em pé. Se houver indignação, é colocada entre parênteses, até que seja hora de retomá-la. Assim ocorreu com as patrulhas policiais que, em abril, detiveram e rasparam as cabeças de uma dúzia de jovens, acusados pela polícia de usar penteados pouco recatados. Ou quando se tentou proibir que as mulheres fumassem narguilé, o que continua sendo feito. E assim ocorreu agora com o Código Penal.
"Reunimo-nos recentemente com representantes do Hamas para falar sobre o assunto", afirma Khalil Abu Shamala, diretor da organização de direitos humanos Al Dameer. "Dissemo-lhes claramente que o que o Hamas está fazendo com as leis não é correto, e que não tem faculdade para editar leis, porque eleições legislativas deveriam ter ocorrido há tempos e não as convocaram. Operando em um vazio legal, não só tentam islamizar a sociedade. Querem transformar Gaza em um Hamastão."
No projeto de lei em questão, do qual este jornal obteve uma cópia, o Hamas penalizaria a sodomia, por exemplo, com "cem chicotadas e a possibilidade de prisão de até cinco anos". Para os reincidentes em duas ocasiões, contempla "pena de morte ou prisão perpétua".
"O Conselho Legislativo da Palestina não pretende promover essa lei. Foi, na realidade, um dos membros do Parlamento que a sugeriu, houve um debate a respeito e a maioria a rejeitou", replica Taher Al Nounou, porta-voz do governo palestino de Gaza, afiliado ao Hamas. "No governo, acreditamos que a sociedade está bem como está. Não precisamos de mais islamização. O islã é algo que se mantém com a ética e os hábitos, e as pessoas aqui já o cumprem. Não precisamos de nada mais, não desejamos o fundamentalismo", acrescenta.
Nem todos os problemas que separam o Hamas da Fatah são de índole moral ou se referem ao islamismo. Seis anos de divisões é muito tempo. Nas prisões de Gaza, há 12 pessoas afiliadas à Fatah, condenadas por crimes durante a guerra civil entre as duas facções, de 2006 a 2007. O Hamas acusa a Fatah de ter fechado na Cisjordânia até 300 organizações de caridade de linha islâmica, relacionadas ao Hamas. Em um acordo assinado no Cairo em 2011, ambas as partes se comprometeram a criar em 12 meses um governo interino de unidade, antes da convocação de eleições. Já se passaram 25 meses.
Em abril, demitiu-se o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, o tecnocrata Salam Fayyad, que o Hamas nunca reconheceu e que seus representantes detestam. Al Nounou, porta-voz do governo do Hamas, o tachou de corrupto em várias ocasiões durante uma entrevista a este jornal. Ambas as partes afirmam que, diante das circunstâncias, talvez este seja o momento de avançar para um governo de união nacional, que dizem desejar.
Há uma semana reuniram-se novamente no Cairo e concordaram em formar um novo Executivo interino em três meses. Esse foi o prazo fixado no Egito, mas nos relógios de Gaza os tempos políticos avançam em um ritmo muito diferente, impermeável às decisões tomadas no exterior.

Reportagem de David Alandete, para o El País, reproduzido no UOL. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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