Os países europeus, sob evidente pressão dos Estados Unidos, criaram uma crise extemporânea e burra com a América Latina, ao "sequestrarem" o avião do presidente Evo Morales, para usar expressão de seu vice, Álvaro García Linera, que é exageradamente colorida, mas não deixa de conter algo de verdade.
Retórica à parte, é incontestável que os países que negaram autorização para que o avião presidencial boliviano sobrevoasse seus territórios violaram a Convenção de Viena sobre Relações Internacionais, de 1961, que João Paulo Charleaux, da "Conectas", ONG de Direitos Humanos, resumiu em seu Facebook.
Diz a convenção: "Os locais da missão [diplomática], mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução".
O mesmo texto estabelece a ilegalidade de uma revista no avião presidencial, a menos que seja autorizada pelos ocupantes, o que não foi o caso de Evo. Consta que a Espanha, por exemplo, autorizaria o pouso, desde que pudesse verificar se Edward Snowden estava ou não a bordo. A convenção determina ainda que "(...) terceiros Estados não deverão dificultar a passagem através do seu território dos membros do pessoal administrativo e técnico ou de serviço da missão e dos membros de suas famílias".
Não adianta agora o chanceler francês Laurent Fabius telefonar para seu colega boliviano David Choquehuanca para pedir desculpas e insinuar que o presidente François Hollande não fora informado da decisão de negar a passagem do avião de Evo pelo espaço aéreo francês.
O incidente uniu os incendiários bolivarianos (Rafael Correa, o próprio Evo, Nicolás Maduro, Raúl Castro) aos moderados Ollanta Humala e José Mujica, passando pela oscilante Cristina Kirchner e terminando na brasileira Dilma Rousseff.
Esta demorou a se manifestar porque, pelo que a Folha apurou, está em uma fase em que não quer ver na mesa nenhum papel que não diga respeito diretamente às manifestações e às reações a elas. O Itamaraty chegou a ser criticado pela esquerda do PT por seu silêncio.
Mas, quando finalmente saiu a nota oficial do Planalto, seu tom foi até mais duro do que a reação inicial dos parceiros. A nota não só assume que o episódio "atinge toda a América Latina", tal como vinham dizendo os incendiários, como diz que pode prejudicar futuras negociações comerciais com os europeus.
Ou seja, pode provocar consequências mais que retóricas, ainda mais que os europeus não escondem o desejo de retomar as negociações para um acordo de livre comércio UE/Mercosul.
Ameaça, por fim, propor "novas iniciativas" em diferentes instâncias regionais, embora o Planalto não tenha delineado nenhuma concretamente, a não ser uma reunião de emergência da Unasul.
Pode ser que os países do Sul se contentem com um pedido de desculpas, exigido na nota de Dilma, e que tudo não passe de tempestade de verão (europeu). Ainda assim, foi uma burrice imperdoável.
Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário