Durante o século 20, houve duas guerras na América do Sul: entre a Bolívia e o Paraguai no Chaco (1932-35) e entre a Argentina e o Reino Unido pelas ilhas Malvinas, ou Falklands (1982). No século 21, surgiu um novo tipo de guerra em que ainda não há baixas: as guerras da mídia.
De um lado, grandes companhias privadas afirmam que a liberdade de expressão e seus negócios são ameaçados por regimes que, segundo elas, são autoritários. Elas chegam a comparar as políticas do governo com o fascismo. De outro lado, os chamados governos populistas ou de esquerda na Argentina, na Bolívia, no Equador e na Venezuela acusam a mídia de prejudicar a democracia, mediante uma cobertura tendenciosa e práticas de monopólio.
Na Argentina, a batalha travada pelos governos Kirchner contra o Grupo Clarín (o maior conglomerado de mídia da região, dono de um jornal, uma emissora de rádio, uma televisão, uma rede de notícias a cabo, uma empresa de cabo, um portal de internet e várias outras empresas) pairou sobre as políticas do país desde 2008. Muitos a chamaram de guerra, mas um divórcio seria uma descrição mais precisa.
Durante a administração de Néstor Kirchner (2003-07), o governo cultivou um relacionamento amistoso com o Clarín por causa da fraca base política do presidente. (Ele só recebeu 22% dos votos em sua primeira candidatura à Presidência.) Entre outras benesses do governo, o presidente Kirchner permitiu que o grupo fundisse suas companhias de cabo, Cablevisión e Multicanal, e a empresa resultante tinha 60% de todos os assinantes de cabo. (A televisão a cabo gerou 60% dos lucros do grupo.) O Clarín apoiou as principais políticas do governo, foi gentil em suas críticas e ignorou questões inconvenientes como a corrupção.
Em algum ponto do caminho, a relação azedou, mas nem o governo nem a companhia ofereceram explicações convincentes para a desilusão.
Quando o conflito irrompeu, em março de 2008, Cristina Fernández Kirchner, que sucedeu a seu marido como presidente em dezembro de 2007, fez o máximo para sabotar os negócios do Clarín. (Néstor Kirchner morreu em 2010.) Ela reteve os direitos de transmissão dos jogos de futebol, cancelou a fusão das empresas de cabo, reduziu de modo significativo a publicidade oficial (passando-a para canais que apoiavam sua administração), pressionou os anunciantes privados a não gastar com o Clarín e acusou os executivos da empresa de crimes durante a última ditadura militar (1976-83). "O Clarín mente" tornou-se um lema do governo.
Kirchner intensificou o conflito em 2009, ao promover uma lei no Congresso que estabeleceu novos regulamentos para a mídia. Estes prejudicariam de maneira irrevogável o modelo de negócios do Clarín, obrigando-o a vender 236 de suas 264 licenças. (O Clarín manteria seus negócios de TV e de cabo, mas de forma muito reduzida.) O grupo travou uma batalha nos tribunais durante três anos e meio para impedir que dois artigos dessa lei fossem implementados, e a Suprema Corte decidirá nos próximos meses se eles são constitucionais.
A cobertura do governo pelo Grupo Clarín tornou-se hostil. "Não há espaço para a neutralidade", disse-me um dos principais editores do "Clarín", que é o jornal de maior circulação na América Latina.
"Ou você está com os defensores da liberdade de expressão ou está com o governo."
Héctor Magnetto, executivo-chefe do Grupo Clarín, que o governo retratou como um criminoso, não falou com a mídia argentina, mas disse ao "New York Times": "Trata-se de mais que o Clarín. Trata-se da democracia".
A concentração da mídia -e o Clarín é um estudo de caso- tem sido um problema para a democracia na região.
Historicamente, algumas famílias e algumas companhias controlaram o mercado em vários países. Essas empresas de mídia dependeram do Estado para publicidade, créditos e outros benefícios, uma situação que criou relações doentias.
No Equador, uma lei de mídia recém-aprovada, semelhante à da Argentina, também tem um dispositivo que rege o conteúdo, incluindo penas por publicar material que possa prejudicar a honra de pessoas. Segundo os adversários do presidente Rafael Correa, que teve uma longa batalha com vários canais de mídia do país, o novo dispositivo significará que o presidente determinará o que pode ou não ser publicado, e a lei obrigará algumas empresas de mídia a fechar.
Como o presidente Correa e o finado Hugo Chávez, que foi pioneiro na tática de minar canais de mídia que considerava indignos enquanto governou a Venezuela, o governo Kirchner tentou contornar as grandes companhias de mídia montando seu próprio veículo de comunicação com a sociedade. Criou extensos canais próprios de mídia -estatais ou semioficiais- para atacar o Clarín e elogiar o trabalho do governo.
Mas esses esforços significam pregar para o coro e têm eficácia limitada no apelo aos leitores moderados de ambos os lados da guerra de mídia. Esses leitores têm de decifrar com dificuldade o que veem no noticiário para descobrir o que aconteceu na véspera.
Reportagem de Martín Sivak, para o The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo.
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