sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Charles Bronson: há dez anos, o cinema ficava menos macho

Nem John Wayne, nem Clint Eastwood, o maior macho do cinema americano se chamou Charles Bronson. Aliás, Charles Dennis Buchinsky. Que o diga minha saudosa tia Leninha, que foi sua maior fã viva, e que, diante de qualquer filme do ator, sempre repetia o mantra: “que coroa charmoso”. Apesar dos olhos verdes, Bronson não era exatamente um homem bonito. Nem exatamente, nem mais ou menos, mas era a essência do H maiúsculo no cinema: um cara comum, gente como a gente, que partia para cima de quem quer que fosse, ainda que os motivos não fossem tão nobres como uma vingança.
Desejo de Matar, de Michael Winner, não é seu melhor filme, mas é seu melhor exemplo. O ano era 1974 e ele interpretava um pai de família, que depois de ter a mulher violentada e morta por um grupo de agressores se transforma num vigilante. O filme fez tanto sucesso que gerou não uma, mas quatro sequências, lançadas num período de vinte anos. Bronson, que no momento do primeiro longa já tinha quase 25 anos de carreira, se transformou num astro do cinema policial.
Mas o descendente de lituanos tinha um rosto de multidão: foi índio, pistoleiro, prisioneiro de guerra, soldado, lutador de rua. Seu personagem mais marcante, ao menos para mim, é “Harmonica”, o lobo solitário de Era Uma Vez no Oeste, do gigante Sergio Leone, que sempre aparecia em cena tocando sua gaita. Ao lado de Jason Robards, Claudia Cardinale e Henry Fonda, todos excelentes, Bronson achava seu espaço na imensidão daquelas imagens. Fez uma, duas, umas dez das cenas mais importantes de sua carreira somente ali.
Sua obra parecia menor diante de tantos atores mais talentosos, mas o misterioso homem dos olhos verdes sempre que podia aparecia em filmes que marcavam época. Seja na Segunda Guerra Mundial de Fugindo do Inferno, de John Sturges, e Os Doze Condenados, de Robert Aldrich; seja na Grande Depressão de O Lutador de Rua, de Walter Hill. Todos filmes de macho, dirigidos por diretores machos. Seu último longa foi justamente o últimoDesejo de Matar, um filme ruim, mas que encerrou a carreira de Bronson num universo que ele construiu para si mesmo.
Há dez anos, Charles Bronson morria. Há dez anos, o cinema ficava menos macho.

Reprodução do blog Filmes do Chico. A postagem original tem algumas fotos de Bronson.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Irã abre caminho para processar EUA por golpe de 1953

Irã abre caminho para processar EUA por golpe de 1953
Parlamento aprova criação de comissão que terá como tarefa apresentar opções jurídicas para ação legal
SAMY ADGHIRNIDE TEERÃ

O Parlamento do Irã deu ontem o primeiro passo rumo a uma ação judicial contra os EUA pelo golpe de Estado que derrubou, há 60 anos, o governo democraticamente eleito do premiê Mohamed Mossadegh.
A medida surge uma semana após a divulgação de documentos que provam a autoria de Washington no golpe tido como ato fundador do sentimento antiamericano no Irã.
Dos 196 deputados presentes na sessão, 167 aprovaram a criação de uma comissão que deverá apresentar, até fevereiro, relatório sugerindo opções jurídicas para processar o Estado americano.
Não está claro se a ação visa compensação financeira.
"O comportamento opressivo dos EUA [em 1953] mostra que a nação iraniana dever erguer-se e buscar os seus direitos", disse o deputado Mahdi Mousavinejad.
Já o deputado Mohammad Mahdi Rahbari votou contra a comissão alegando que ela "não trará benefícios" ao Irã.
O papel da CIA no golpe contra Mossadegh foi confirmado em documentos oficiais divulgados pelo Arquivo de Segurança Nacional dos EUA.
"O golpe militar que derrubou Mossadegh [...] foi realizado sob direção da CIA como um ato de política externa americana concebido e aprovado pelas mais altas instâncias do governo", diz o texto, liberado em virtude da lei de acesso à informação.
Americanos e britânicos derrubaram Mossadegh em agosto de 1953 em represália à decisão do premiê de nacionalizar a indústria de petróleo do Irã. A nacionalização visava equilibrar o lucro obtido com a commodity, já que iranianos recebiam apenas 17% das receitas.
EUA e Reino Unido também temiam que, em plena Guerra Fria, Mossadegh planejasse adotar o comunismo no Irã.
Espiões americanos infiltrados no país conseguiram criar caos financiando ações de vandalismo e corrompendo clérigos e políticos. A operação, conhecida como Ajax, também teve campanha de difamação na mídia iraniana.
Mossadegh foi preso e o xá Mohamed Reza Pahlavi, alinhado ao Ocidente, recuperou plenos poderes. Ele reinou até ser varrido do poder pela revolução de 1979.
O atual regime iraniano, embora desconfortável com a figura de Mossadegh, que não era religioso, cita o golpe como prova definitiva das supostas más intenções do Ocidente em relação ao Irã.


Reprodução da Folha de São Paulo.

Questões nada diplomáticas

A história, como está servida, não é convincente. Apesar de muito conveniente à exploração política, que não requer nem escrúpulos, quanto mais coerência dos fatos narrados, para não falar em veracidade.
O desarranjo da história torna ainda mais problemática a demissão sumária do (ex) ministro Antonio Patriota, em decisão de Dilma Rousseff, na melhor hipótese, meramente emocional. O que é incabível em presidente da República. Mas, não é possível deixar sem este registro, decisão descabida também por seu componente de injustiça.
Na explicação de sua atitude, o diplomata Eduardo Saboia associou as condições precárias da saúde de Roger Pinto Molina, que incluiriam alto risco de morte, e as de sua instalação na embaixada brasileira, que comparou ao DOI-Codi.
A referência à saúde fez com que o ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça, cuidasse de imediato exame médico do senador boliviano em sua chegada ao Brasil. O senador está bem. Já suas primeiras fotos brasileiras mostraram o roliço próprio dos bem nutridos, corado, cabelo bem aparado, sem sugestão alguma, por mínima que fosse, de trato e condições aquém do devido pela embaixada.
Assim sendo, a respeito da saúde e da comparação com o DOI-Codi, o que passa a interessar são as condições do próprio diplomata Eduardo Saboia, que o fizeram capaz de alegações tão incomprováveis em tão pouco tempo depois de emitidas.
Também resta um interesse secundário. Eduardo Saboia estava como encarregado de negócios brasileiro em La Paz, principal responsável na e pela embaixada temporariamente desprovida de embaixador. As condições de internação do asilado comparáveis às do DOI-Codi eram, portanto, de sua responsabilidade. Tal como a autoridade e o dever de torná-las dignas. Não foram esclarecidos os motivos da omissão, complementada pela viagem (fuga, dizem) temerária, Andes abaixo.
É mais do que duvidoso, ainda, que um diplomata já experimentado e com relações influentes no Itamaraty e no governo (Celso Amorim, ministro da Defesa, por exemplo) não recorresse a providências mais simples e fáceis. E preferisse logo a transgressão radical de suas responsabilidades funcionais, o risco de consequências pessoais e, tão claro no seu caso, o problema diplomático para o Brasil.
Foi dito que tudo veio de inspiração obtida de Deus, na leitura dos Salmos, mas aí já é um nível de relações diplomáticas que não dá para considerar. Podem ser úteis no Juízo Final. Para o raciocínio chão a chão, a história contada não tem o mínimo de coerência para ser admitida. E nem é preciso introduzir, na sua apreciação, elementos objetivos como os interesses à volta do senador Roger Pinto Molina, a área fronteiriça em que tem influências, sua condenação à cadeia, os 13 processos que lhe restam, com uma acusação de homicídio, e sua riqueza.
Nada disso precisa interessar aqui, porque não interessou a Aécio Neves, Eduardo Campos, José Agripino e tantas outras figuras expresssivas que logo associaram o nome e a honra política ao senador boliviano, agradecidos a Eduardo Saboia, seu novo herói, por trazê-lo para a sua proximidade.
A sensibilidade brasileira também está agradecida. A quantidade de comentaristas a revelarem agora sua preocupação com o problema do asilo é característica das grandes questões e dos grandes acontecimentos. Mais tarde, por certo, será explicado por que nenhum emitiu uma só palavra, jamais, de crítica à recusa inglesa de salvo-conduto para Julian Assange deixar seu longo asilo na embaixada do Equador, em Londres. Uma história sem mistérios e coerente.


Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo.

O nível de desenvolvimento de cada nação

Uma parceria só é justa e eficiente quando há equilíbrio na divisão de responsabilidades e benefícios.
O novo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) passa a impressão de que o governo federal ainda não assimilou essa lógica.
Apesar de contar com Estados, municípios e empresas privadas para investimento e execução de quase metade dos R$ 508 bilhões previstos para os próximos 30 anos, o governo federal tapou novamente os ouvidos para a mais importante reivindicação do setor: a redução da carga tributária imposta.
Em 2012, as empresas de saneamento depositaram cerca de R$ 2 bilhões nos cofres federais na forma de PIS/Pasep e Cofins. A Sabesp respondeu por cerca de um terço desse valor, com R$ 654 milhões. No total de tributos, a Sabesp repassou R$ 1,2 bilhão aos fiscos no ano passado.
Façamos juntos uma reflexão: por que smartphones, películas para cinema e até a subsidiária instalada no Brasil pela Fifa não pagam PIS/Pasep e Cofins e quem trata e fornece água para a população paga?
O grau de desenvolvimento de um país só é aferido de fato pela qualidade de vida da população. Água limpa e esgoto coletado e tratado são fundamentais. Nesse aspecto, o Brasil exibe níveis críticos de subdesenvolvimento. Isso explica o veto do governo federal à visita de uma comitiva da Organização das Nações Unidas que avaliaria a situação do acesso à água e saneamento no país, conforme denúncia publicada no site da entidade.
Em São Paulo, a Sabesp caminha para universalizar o atendimento no interior em 2014 e em todo o Estado até o fim da década. No Brasil, mais da metade da população ainda não é atendida por esgotamento sanitário, segundo dados de 2011 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. A estrutura disponível para tratamento de esgoto é ainda pior: alcança 37,5% do volume coletado. E, em pleno século 21, 18% dos brasileiros ainda não têm acesso a água tratada.
Na última disputa presidencial, tivemos a impressão de que o saneamento, finalmente, passaria a fazer parte das prioridades nacionais. Os principais candidatos, incluindo a hoje presidente Dilma Rousseff, comprometeram-se com a desoneração do setor. Nosso ânimo aumentou quando o Ministério das Cidades informou, no ano passado, que a esperada medida estava a caminho. Mas as expectativas se frustraram.
E o Plansab não é um alento. Embora tenha sido constituído, conforme anuncia o Ministério das Cidades, "a partir de ampla participação cidadã e de diferentes setores da sociedade", o plano ignorou a proposição das empresas de saneamento, personagens-chave desse processo.
Temos uma proposta clara: reverter todo o valor da isenção do PIS/Pasep e Cofins em investimento direto em infraestrutura. Essa alternativa oferece de imediato ganho de tempo e eficiência em prol da universalização do saneamento no país, já que falamos de companhias com conhecimento técnico e projetos de expansão já estruturados, mas que necessitam de fôlego financeiro para colocá-los em prática.
A desoneração pode detonar um ciclo virtuoso no país. Em nada colide com a bem-vinda disposição do governo federal de investir anualmente de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões em saneamento. Menos ainda impede a concessão de linhas de créditos a prefeituras e Estados.
É uma proposta que se soma às demais diretrizes do Plansab. Inclusive incentivaria a ampliação de parcerias entre empresas e municípios para a elaboração dos planos de saneamento requisitados para a transferência das verbas federais. Na atual situação, inúmeros municípios correm o risco de ficar sem o repasse pela falta de experiência na elaboração de planejamento.
Aprovado pelo conselho do Ministério das Cidades, o Plansab aguarda agora a apreciação da presidente Dilma. Esperamos que seja ouvida essa reivindicação. Afinal, o que está em discussão são serviços essenciais à vida e não meros bens supérfluos de consumo.


Texto de Dilma Pena, diretora-presidente da Sabesp - Companhia de Saneamento de São Paulo, publicado na Folha de São Paulo

Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, segundo IBGE

Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, segundo IBGE

Número de gaúchos ultrapassa 11 milhões em junho

A população estimada do Brasil é 201.032.714 habitantes, pelos dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a junho deste ano. De acordo com o levantamento, há 7.085.828 habitantes a mais do que o registrado em julho de 2012. Os dados foram publicados nesta quinta-feira no Diário Oficial da União.

São Paulo é o estado mais populoso com 43,6 milhões de habitantes, seguido por Minas Gerais com 20,5 milhões de residentes e Rio de Janeiro com 16,3 milhões de pessoas que declaram moradoras da região.

A Bahia registra 15 milhões de habitantes, o Rio Grande do Sul 11,1 milhões e o Paraná, 10,9 milhões de residentes. Em seguida aparecem Pernambuco com 9,21 milhões de habitantes, Ceará com 8,78 milhões, Pará com 7,97 milhões, Maranhão com 6,79 milhões, Santa Catarina com 6,63 milhões e Goiás com 6,43 milhões.

Com menos de 5 milhões de habitantes, estão Paraíba (3,91 milhões), Espírito Santo (3,84 milhões), Amazonas (3,81 milhões), Rio Grande do Norte (3,37 milhões), Alagoas (3,3 milhões), Piauí (3,18 milhões), Mato Grosso (3,18 milhões), Distrito Federal (2,79 milhões), Mato Grosso do Sul (2,59 milhões), Sergipe (2,19 milhões), Rondônia (1,73 milhão) e Tocantins (1,48 milhão).

A Região Norte, tem três estados com menos de 1 milhão de habitantes. Roraima é o menos populoso, com 488 mil habitantes. O Acre tem 776,5 mil habitantes e o Amapá, 735 mil.

Veja abaixo a população de cada estado: 

Rondônia: 1.728.214
Acre: 776.463
Amazonas: 3.807.923
Roraima: 488.072
Pará: 7.969.655
Amapá: 734.995
Tocantins: 1.478.163
Maranhão: 6.794.298
Piauí: 3.184.165
Ceará: 8.778.575
Rio Grande do Norte: 3.373.960
Paraíba: 3.914.418
Pernambuco: 9.208.551
Alagoas: 3.300.938
Sergipe: 2.195.662
Bahia: 15.044.127
Minas Gerais: 20.593.366
Espírito Santo: 3.839.363
Rio de Janeiro: 16.369.178
São Paulo: 43.663.672
Paraná: 10.997.462
Santa Catarina: 6.634.250
Rio Grande do Sul: 11.164.050
Mato Grosso do Sul: 2.587.267
Mato Grosso: 3.182.114
Goiás: 6.434.052
Distrito Federal: 2.789.761


Reprodução do Correio do Povo.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O eterno masculino


É sempre estranho que os heróis de histórias em quadrinhos tenham de usar algum tipo de uniforme. Qual a razão daquelas roupas inteiriças, daquelas capas bandeirosas e sungões tamanho GG?
Corrijo o pensamento, ao imaginar a alternativa absurda. Ninguém de paletó, gravata e chapéu poderia sobrevoar os céus de Metrópolis sem ridículo. Um Super-Homem de azul esvoaçante pode ser absurdo, mas seria ainda mais absurdo em roupagens civis.
Joaquim Barbosa talvez fosse menos implacável se o despojassem da toga de morcego. Verdade que outros ministros do STF, capazes de mostrar larga indulgência frente aos réus do mensalão, usam também a capa protocolar.
Só que, sentados, deixam que predomine o paletó comum, a camisa neutra, a gravata banalíssima. Os males da coluna forçam Barbosa a manter-se de pé. Pior que isso. Apoiado no espaldar da poltrona giratória, o presidente do STF parece uma águia no alto do penhasco, pronto para a arremetida fatal.
Não me estendo na comparação. Concluo que a roupa ajuda e volto ao tema dos uniformes dos super-heróis.
Nenhum mais absurdo, pensando bem, que o do meu preferido na infância. Tratava-se do Fantasma, "o espírito que anda". Em plena selva do interior da Índia, ou talvez na África Equatorial, ele não tirava nunca a malha roxa, que lhe cobria a cabeça inclusive.
Por cima, o maiô de listras pretas em diagonal, do qual pendia o prosaico acessório de uma pistola automática, no coldre antigo. O mais estranho era a máscara, sumária como a parte de cima de um biquíni, mas que por alguma razão velava seus olhos atrás de uma borracha branca.
Naquela indumentária grudenta, meio de mergulhador, meio de Fanta Uva, o Fantasma sentava-se sozinho no Trono da Caveira, afagando seu lobo Capeto, e dava audiência a seus súditos --uma tribo de pigmeus, dotada de rei próprio, a quem distinguia um chapéu cônico de galhos secos, à guisa de coroa.
Com tudo isso, o Fantasma me parecia mais interessante do que Mandrake, Tarzã, Super-Homem e mesmo o Batman. Seria, provavelmente, mais "sexy" que todos esses rivais.
Tinha, também, aparência mais maligna. Cercava-se de caveiras; longe do ambiente urbano, na escuridão da jângal, cultivava a própria lenda.
Ao mesmo tempo, não tinha nenhum poder sobrenatural. Apenas a credulidade dos nativos --sempre ela-- cuidava de aumentar suas façanhas. Era tido por imortal. Mas não; representava apenas o último descendente de uma dinastia que há 400 anos, com o mesmo uniforme, jurara combater os malfeitores daquelas bandas.
Teria voado até as nuvens para derrotar um gigante de dez andares. Não, não. A própria narrativa dos quadrinhos ironizava a licença poética dos selvagens. No máximo, esmurrara um gângster grandalhão.
Claro que, destituído de superpoderes, o Fantasma se tornava ainda mais formidável aos olhos de um menino. Representava o luxo de uma completa autonomia; era realista em seu delírio; não tinha nada com que contar, exceto a imaginação dos pigmeus que o seguissem.
Sai nas bancas, pela editora Pixel, um livro com as primeiras histórias do Fantasma. Com história de Lee Falk e desenhos de Ray Moore, a saga dos "Piratas do Céu" foi publicada pela primeira vez em fins de 1936.
Embora a publicação da Pixel se apresente como o primeiro volume de uma série, já pegamos a aventura pela metade. Nessas 126 páginas, em quadrinhos bem pequenos, o herói está às voltas com uma quadrilha composta exclusivamente de belíssimas aviadoras.
Eu tinha a impressão --mas pode ser devido a versões posteriores-- que os desenhos do Fantasma fossem menos primitivos. Os movimentos do herói são rígidos, os enquadramentos se prendem ao convencional, as expressões faciais caem no tosco e no amadorístico.
Eram só isso aqueles quadrinhos? Não. A aventura tem boas reviravoltas, e todas devido a um só fator: a inconstância do sexo feminino. Várias vilãs --sempre lindas-- se apaixonam sucessivamente pelo herói. Ele as manipula como quer, mesmo que na maior parte do tempo algemado e atrás das grades.
As aviadoras se dividem, brigam, reconciliam-se, traem-se umas às outras. Não apenas um colonizador levando paz às tribos primitivas, o Fantasma também triunfa, intacto, sobre tantas sedutoras. É o eterno masculino. Talvez por isso mesmo não dispense o collant roxo e o maiô listradinho.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

Vamos para onde os brasileiros não vão, diz cubano vaiado por médicos

Vamos para onde os brasileiros não vão, diz cubano vaiado por médicos


AGUIRRE TALENTO

DE FORTALEZA

Um dos médicos cubanos vaiados na noite de anteontem por um grupo de brasileiros em Fortaleza, Juan Delgado, 49, disse que não entende as razões da hostilidade. "Vamos ocupar lugares onde eles não vão", disse.
Uma foto que flagrou o momento em que Delgado era vaiado por duas brasileiras de jaleco branco saiu ontem na Primeira Página da Folha.
Ele e outros estrangeiros foram cercados em um protesto do Simec (Sindicato dos Médicos do Ceará), ao sair do primeiro dia do curso do programa Mais Médicos.
"Me impressionou a manifestação. Diziam que somos escravos, que fôssemos embora do Brasil. Não sei por que diziam isso, não vamos tirar seus postos de trabalho", afirmou ele.
O protesto em que manifestantes chamavam os cubanos de "escravos" foi gravado em vídeo pela Folha.
O médico disse que veio ao Brasil por vontade própria e que já trabalhou no Haiti.
"Isso não é certo, não somos escravos. Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário", afirmou. "Os médicos brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós: ir aos lugares mais pobres prestar assistência", completou.
Delgado diz acreditar, no entanto, que "não são todos" os médicos brasileiros que rejeitam a presença dos cubanos e acha que será possível dar assistência aos brasileiros mesmo em condições de infraestrutura precária.
"O trabalho vai ser difícil porque vamos a lugares onde nunca esteve um médico e a população vai precisar muito de nossa ajuda", disse.
Ele afirmou ainda que o desconhecimento da língua portuguesa não será um empecilho e que a população brasileira "aceitará muito bem os cubanos".
"Nenhum de nós vai voltar a Cuba. Estamos com vontade de começar logo a trabalhar e atender a população."

REAÇÃO

Ontem, o Ministério da Saúde e entidades de saúde do Ceará fizeram um desagravo aos médicos estrangeiros e classificaram de "intolerância, racismo e xenofobia" o protesto do Simec.
Horas depois, o presidente do sindicato, José Maria Pontes, disse que as vaias não foram dirigidas aos cubanos, mas aos gestores do curso.
"E quando os manifestantes gritaram 'escravo, escravo, escravo', não foi no sentido pejorativo. Foi no sentido de defesa, de que eles estão submetidos a trabalho escravo e que estamos lutando para mudar aquele vínculo."
Em Belo Horizonte, onde esteve ontem, a presidente Dilma Rousseff foi questionada sobre a vaia e respondeu: "Eu achei bom os aplausos".


Reprodução da Folha de São Paulo

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Por que apoio os médicos estrangeiros

Sei que o governo federal lançou o projeto Mais Médicos de forma improvisada como uma resposta às manifestações de rua.
Também sei que os problemas da saúde são complexos e apenas colocar médicos em cidades distantes não é a salvação.
Para acrescentar, devemos considerar que Alexandre Padilha, ministro da Saúde, é candidato ao governo de São Paulo --o que costuma trazer ingredientes eleitorais para uma questão técnica.
Mesmo assim, apoio a vinda de médicos estrangeiros porque é melhor algum médico do que nenhum médico.
Lembremos que a vaga foi oferecida a brasileiros, com uma bolsa de R$ 10 mil mensais mais ajuda de custo - o que é mais do que ganha um professor universitário no topo na carreira.
Se a vinda dos cubanos não estiver arranhando a lei local, ótimo. A formação de médicos em Cuba é respeitada internacionalmente.
Ou seja, não é a melhor solução, mas é alguma solução para os mais pobres sem acesso à saúde.
É melhor um médico falando portunhol do que nenhum médico falando.
Minha suspeita é que a reação de associações médicas - em alguns casos um tanto histéricas - estão mais ligadas aos interesses (ou supostos) da corporação do que do cidadão.

Gilberto Dimenstein, na Folha de São Paulo.


Comentário rápido: Se Gilberto Dimenstein suspeita que a reação das associações médicas estão mais ligadas aos interesses da corporação do que do cidadão, eu tenho quase certeza.

Diminui otimismo internacional acerca do futuro da Índia

Diminui otimismo internacional acerca do futuro da Índia
Por GARDINER HARRIS e BETTINA WASSENER

NOVA DÉLI - Nos últimos dez anos, a Índia vinha dando a impressão de estar prestes a assumir seu lugar ao lado da China como uma das potências econômicas e estratégicas dominantes da Ásia. Sua economia estava crescendo, suas Forças Armadas se fortaleciam e seus líderes ganhavam destaque no cenário mundial.
Mas um verão repleto de problemas prejudicou a confiança do país, e um coro crescente de críticos começa a indagar se a ascensão da Índia não poderá demorar anos ou décadas para se completar -muito mais tempo do que alguns esperavam.
"Existe um senso crescente de desesperança, especialmente entre os jovens", disse Ramachandra Guha, um dos principais historiadores do país.
Três fatos recentes vieram cristalizar esses novos receios. No último 14 de agosto, um dos mais avançados submarinos indianos, o Sindhurakshak, explodiu e afundou em seu ancoradouro em Mumbai.
No dia 16 de agosto, um general indiano de alto escalão anunciou que a Índia matou 28 pessoas nas últimas semanas na área da linha de controle na Caxemira, nos piores combates travados entre Índia e Paquistão desde um cessar-fogo acordado em 2003.
No mesmo dia, o índice Sensex, da Bolsa de Mumbai, caiu quase 4%. Nenhum dos fatos teve qualquer relação com os outros, mas, vistos em conjunto, traçam o retrato de um país que está rapidamente perdendo sua confiança.
As dificuldades econômicas indianas talvez sejam o fator mais problemático. "Hoje a Índia é o doente da Ásia", comentou Rajiv Biswas, economista-chefe para a Ásia-Pacífico da provedora de informações financeiras IHS Global Insight.
Alguns dos problemas vêm de longa data: burocracia sufocante, infraestrutura superada e aparente incapacidade para implementar mudanças urgentemente necessárias. Os investidores fizeram vista grossa para esses problemas durante anos, atraídos pelo potencial de um mercado de 1,2 bilhão de pessoas. O dinheiro fluiu para a Índia, permitindo ao país disfarçar seu deficit crônico de conta corrente e proporcionando certo grau de comércio externo e investimentos.
Mas, após mais de uma década de tentativas, em grande parte vãs, de chegar ao mercado interno da Índia e de usar a mão de obra do país para manufaturar produtos de exportação, muitas empresas estrangeiras estão começando a perder a paciência. Justamente no momento em que elas começam a desanimar, a recuperação da economia americana vem levando investidores a tirar recursos dos mercados emergentes e redirecioná-los aos EUA.
Analistas temem que o aumento da inflação, a desaceleração do crescimento, a desvalorização da moeda e o enfraquecimento da confiança dos investidores possam gerar um círculo vicioso.
A explosão do submarino destacou mais uma vez os desafios estratégicos que enfrentam as Forças Armadas da Índia e até que ponto elas estão atrasadas em relação à China. A Índia ainda depende da Rússia para mais de 60% de suas necessidades de equipamentos de defesa, e seu Exército, Força Aérea e Marinha têm equipamentos que, em muitos casos, datam de décadas atrás.
Além disso, analistas dizem que é pouco provável que a Índia ganhe peso no palco mundial se não chegar a algum acordo com o antigo rival Paquistão.

Gardiner Harris escreveu de Nova Déli e Bettina Wassener de Hong Kong

Reportagem do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo

Alemanha batalha contra redução populacional

Alemanha batalha contra redução populacional
Berlim luta contra queda da população

Por SUZANNE DALEY e NICHOLAS KULISH

SONNEBERG, Alemanha - À primeira vista, esta pequena cidade na região central da Alemanha parece próspera e bem cuidada. Mas o vice-prefeito Heiko Voigt pode apontar dúzias de casas desocupadas, que ele duvida que sejam vendidas algum dia.
A realidade é que a população alemã está encolhendo e que cidades como essa lutam para esconder seu vazio. Voigt já supervisionou a demolição de 60 casas e 12 prédios de apartamentos, estrategicamente criando áreas gramadas. "Estamos tentando manter a cidade com boa aparência", afirmou ele.
O interior alemão talvez seja o lugar ideal para testemunhar o impacto cada vez mais visível da forte redução das taxas de fertilidade europeias nas últimas décadas, problema com implicações assustadoras para a economia e a psique do continente.
A força de trabalho está envelhecendo rapidamente, e as linhas de montagem estão sendo redesenhadas para minimizar atividades que exijam curvar as costas e erguer peso.
No Censo mais recente, a Alemanha descobriu que havia perdido 1,5 milhão de habitantes. Até 2060, dizendo especialistas, o país pode perder mais 19% da população, ficando com cerca de 66 milhões de habitantes.
Demógrafos dizem que um futuro semelhante aguarda outros países europeus, mas que poucos estão em condições de fazer algo a respeito.
Até agora, embora gaste US$ 265 bilhões por ano em subsídios para famílias, a Alemanha só conseguiu provar como é difícil enfrentar o problema. Isso ocorre em parte porque a solução está em rever valores, hábitos e atitudes em um país que tem um conturbado histórico na aceitação de imigrantes e onde as trabalhadoras com filhos ainda costumam ser rotuladas como negligentes.
Para que a Alemanha evite uma grave escassez de mão de obra, dizem especialistas, ela terá de encontrar formas de manter os trabalhadores mais velhos nos seus empregos e precisará atrair imigrantes. Também precisará colocar mais mulheres na força de trabalho e convencê-las a ter mais filhos.
Vários estudos mostram que os índices de desemprego elevados -acima de 50% entre os jovens em países como Grécia, Itália e Espanha- estão desencorajando ainda mais os jovens a terem filhos. Segundo a União Europeia, o número total de nascidos vivos em 31 países europeus caiu 3,5% entre 2008 e 2011, de 5,6 para 5,4 milhões. Em 1960, cerca de 7,5 milhões de crianças nasceram em 27 países europeus.
Além do mais, há cerca de quatro trabalhadores para cada aposentado na União Europeia. Até 2060, a média cairá para dois trabalhadores por pensionista, segundo a UE. Críticos dizem que a Alemanha conseguiu poucos resultados por meio dos benefícios para filhos e mães que ficam em casa e com as isenções tributárias para pessoas casadas.
Há quem considere que um melhor investimento para a fertilidade seria ampliar as redes de creches e programas pós-escolares, ajudando mulheres que fazem malabarismos entre a carreira e a maternidade.
Mas é difícil reverter anos de subsídios para as famílias tradicionais. Melanie Vogel, 39, de Bonn, descobriu ao ter um filho que a tentativa de misturar trabalho e maternidade a deixaria solitária, desanimada e sem dinheiro. Nenhuma das suas amigas trabalha em tempo integral, e sua sogra deixou claro que desaprovava a tentativa de conciliar as coisas, assim como os clientes da empresa de recrutamento profissional que ela dirige com o marido."Antes de o meu filho nascer, eu era Melanie, uma mulher de negócios", disse Vogel. "Mas, depois que meu filho nasceu, para muita gente eu era apenas uma mãe."
O governo alemão também está elevando a idade de aposentadoria, de 65 para 67 anos. A participação de pessoas de 55 a 64 anos na força de trabalho subiu de 38,9% em 2002 para 61,5% em 2012.
A Volkswagen redesenhou sua linha de montagem para facilitar tarefas que exigem curvar o tronco e levantar os braços, tornando-as assim menos desgastantes para o corpo dos operários. Outras empresas estão oferecendo jornadas de trabalho flexíveis.
Diante dos índices de desemprego elevados em todo o sul e leste da Europa, a Alemanha está em boas condições de atrair talentos de seus vizinhos, e já começou a fazer isso. No entanto, com centenas de milhares de postos de trabalho qualificados em aberto, alguns executivos acreditam que a Alemanha deveria alterar suas leis imigratórias. Muitos líderes estão examinando a cultura alemã, ávidos por fazerem o que for necessário para tornar o país mais hospitaleiro.
Um recente estudo mostrou que mais de metade dos gregos e espanhóis que chegavam à Alemanha ia embora em menos de um ano. Muitos dos que chegam são jovens altamente qualificados que veem um mercado global para suas capacidades.
Reiner Klingholz, do Instituto de Berlim para a População e o Desenvolvimento, disse: "Acho que a resposta é que precisamos olhar para fora da Europa".


Reportagem do The New York Times, reproduzida na Folha de São Paulo.

Existe vida sexual no casamento?

Com o sugestivo título "Casamento indissolúvel ou relação sexual duradoura?", Wilhelm Reich provocou seus leitores a pensarem sobre suas vidas sexuais e amorosas.
Para ele, a maior dificuldade em uma relação permanente está no conflito entre o enfraquecimento do desejo sexual e o crescimento da ternura entre os parceiros.
Em quase todas as relações, mais cedo ou mais tarde, surgem períodos de fraca atração sexual ou até mesmo de ausência total de desejo, o que pode ser temporário ou, em muitos casos, definitivo.
Muitos homens e mulheres que entrevistei reclamaram de uma vida sexual "insatisfatória", "medíocre", "sem tesão", "rotineira", "burocrática".
A dura realidade é que, por mais que se ame o parceiro, a atração sexual não se impõe à força. Não adianta nada cobrar o interesse sexual do outro ou buscar solucionar o problema com truques e regrinhas de sedução. Na maior parte das vezes, a cobrança excessiva prejudica ainda mais o desejo sexual.
A situação pode ser ainda mais complicada quando o enfraquecimento do desejo ocorre em apenas um dos parceiros. O outro, que ainda sente atração, se sente rejeitado, desprezado, humilhado.
A existência de outros tipos de envolvimentos --como filhos, dependência econômica, medo da solidão-- podem tornar o sofrimento do casal ainda maior.
Homens e mulheres estão constantemente expostos a estímulos sexuais provenientes de fora do casamento. Quando a relação sexual se torna um dever ou um hábito, podem ser criadas situações de irritação ou até mesmo de ódio do parceiro, pelo fato de ele frustrar a realização do desejo sexual.
Mesmo assim, muitos casais permanecem juntos, tanto por acreditarem que se amam, quanto por dependências familiares, sociais e psicológicas. A relação conjugal pode se tornar, então, uma verdadeira tortura recíproca e prolongada.
É o que tenho observado em muitos casais que pesquiso. Eles estão insatisfeitos, frustrados e infelizes, mas não conseguem se separar. E, mais ainda, cobram a fidelidade do parceiro, mesmo quando já não sentem qualquer desejo sexual por ele.
Como conciliar amor, desejo sexual e fidelidade nos casamentos duradouros?
Eis a questão.


Texto de Mirian Goldenberg, na Folha de São Paulo

Garantias

Em artigo na Folha do dia 23, o jornalista Mário Chimanovitch define ironicamente como "almas sensíveis" e "almas bem-intencionadas" os jornalistas que repudiam as práticas do Estado, qualquer Estado, como as reveladas por Snowden, Assange e o recém-condenado Manning. Acha ele que a liberdade de informação não pode "se sobrepor ao direito do Estado de garantir a segurança do seu território e de seus cidadãos diante da ameaça letal, onipresente, do terrorismo islâmico inspirado em organizações como a Al Qaeda" (...).
Nada do divulgado pelos três implicou "ameaça letal" nem alimentou terrorismo. Mas Chimanovitch indaga, já explicitada sua resposta: "Que direitos, enfim, foram outorgados ao jornalista para que ele, como senhor absoluto da verdade, se empenhe em burlar os mecanismos do país onde trabalha ou que se configura em alvo de suas investigações', para expor dados que fatalmente vão comprometer medidas e pessoas empenhadas na proteção de seres humanos e bens nacionais?"
O jornalista a que Chimanovitch se refere não é menos "senhor absoluto da verdade" do que ele próprio mostra considerar-se, embora não tenha "alma sensível" nem "alma bem-intencionada".
Mesmo tal carência não impede de saber, porém, que na Alemanha nazista não era possível publicar nada sobre campos de concentração e outros crimes do Estado e do governo, a título de "garantir a segurança do seu território e de seus cidadãos diante da ameaça letal" de ciganos, homossexuais, deficientes físicos e, mais do que todos, judeus.


Mais Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

O percurso

Dos argumentos polêmicos contra a vinda de médicos do exterior, dirigentes corporativos da classe médica brasileira passaram a um histerismo gaiato e primário e já estão em atitudes fronteiriças de crimes, com a incitação aos médicos a "não socorrerem erros" que, imaginam, os estrangeiros cometerão. Sem trocadilho: trata-se de um processo nitidamente doentio.
A vinda de médicos cubanos anexou à reação corporativa a sua utilização ideológica pelos comentaristas conservadores. Já se acumulam bastantes indicações, aliás, de que também as exasperações de vários dos dirigentes corporativos da classe médica não são apenas corporativas. Seu recheio é ideológico, ainda tão nostálgico da guerra fria que não consegue disfarçar-se o suficiente, assim como se dá com os comentaristas. Quanto a isso, nada de novo, portanto. Nem de importante.
Mas, em tanta e tão descomposta reação em nome da classe médica, como ficam os carentes da atenção de um médico nas lonjuras onde nem um só foi jamais visto? Esses numerosos conselhos de medicina, essas inúmeras associações de médicos, esses incontáveis dirigentes corporativos nada têm a dizer que não seja contra o preenchimento estrangeiro dos buracos de sofrimento deixados por brasileiros pelo Brasil afora?
Não têm nem uma palavra proponente, alguma preliminar de plano, uma iniciativa viável, para intercalar nas reações vociferadas à vinda de estrangeiros? Não, não têm. Nunca tiveram, desde que as urgências da saúde pública voltaram a ser um problema de consciência nacional, perdida com as primeiras décadas do século passado.
O nível tão baixo em que está a ação dos dirigentes corporativos não é justo com a classe médica. As referências, digamos, domésticas a esse episódio parecem largamente favoráveis à vinda dos estrangeiros. E, nelas, os criticados por suas reações são "os médicos", assim generalizados.

Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

Mal na foto

As reações destemperadas de órgãos e conselhos médicos à vinda dos cubanos quase dão razão ao governo brasileiro. Quase.
O ponto alto do desvario corporativo foi o presidente do CRM mineiro afirmando que orientaria os médicos das Alterosas a não atender eventuais erros cometidos pelos cubanos --o que dá bem a medida da conta em que o CRM-MG tem o paciente.
O governo, porém, não fica muito melhor na foto. A ideia de levar médicos às áreas desassistidas é correta. Melhor ainda se levasse também a estrutura para fazer boa medicina, mas, como sabemos que isso não acontecerá tão cedo, que haja ao menos um profissional capaz de tratar diarreias, infecções e verminoses.
Como essas doenças têm alta prevalência nas áreas remotas e são relativamente fáceis de diagnosticar, é improvável que os cubanos, mesmo que tenham menor preparo técnico que os brasileiros, como dizem os conselhos, matem mais pessoas por iatrogenias variadas do que salvem. 
O argumento de que é errado os cubanos receberem bem menos do que seus colegas brasileiros para fazer a mesma coisa tem certo apelo. É incômodo ver o governo brasileiro se desdobrando para ajudar financeiramente uma ditadura. Mas diferenças no pagamento de médicos não são novidade. Quem entrar num hospital paulista vai se deparar com muitas camadas arqueológicas de médicos, atuando sob variados regimes e remunerações. Há estatutários, celetistas concursados, celetistas em contrato de emergência, profissionais vinculados a OSs etc. É estranho que as diferenças só mobilizem conselhos e procuradores agora.
O que é imperdoável mesmo é a declaração da AGU de que, se algum cubano requisitar asilo ao Brasil, terá seu pedido negado. Fazer negócios com ditaduras é uma coisa. Até a mais ética das democracias comercia com China, Arábia Saudita etc. Mas atuar como carcereiro para os irmãos Castro vai muito além da conta.


Texto de Hélio Schwartsman, na Folha de São Paulo.

Um rei em Washington

Viajo para Washington. Encontro a cidade em festa. Não admira. Cinquenta anos atrás, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King passou pela capital e, na presença dos 250 mil manifestantes que fizeram a Marcha sobre Washington, proferiu um dos discursos mais famosos do século 20.
Digo "famoso", mas infelizmente pouco lido. Pena. Relendo o discurso de Luther King por estes dias, entendi melhor o talento e a eficácia do homem na luta pelos direitos civis dos negros. Nada revela tão claramente uma inteligência quanto as palavras que ela escolhe.
Para começar, o texto é uma peça notável de oratória cristã. O fato é por vezes ignorado: Luther King foi sobretudo influenciado por Thoreau e Gandhi, dizem os especialistas, e a sua estratégia de resistência não violenta é tributária dos dois.
Certo, certíssimo. Mas, antes de Thoreau e Gandhi, recordo aos especialistas que Luther King foi formado na adolescência pelo teólogo Benjamin Mays, que incutiu no pupilo uma ideia revolucionária e simples: se os ensinamentos da Bíblia não servem para mudar os homens, então a Bíblia serve para muito pouco.
Luther King aprendeu a lição: primeiro, ao tornar-se também teólogo e pastor batista no Alabama. E, depois, ao aplicar o arsenal teológico à causa dos direitos civis.
A cadência e o vigor retórico de Luther King são próprios de um pastor em frente ao seu rebanho.
E o uso de metáforas --o sonho de que um dia um povo longamente escravizado chegará a um oásis de liberdade e justiça-- também só é possível em alguém que leu o Antigo Testamento e transpôs para a causa dos direitos civis as provações épicas dos israelitas nos seus múltiplos e trágicos exílios.
Mas a grandeza de Luther King não acaba aqui. Se o reverendo Luther King fosse um "Muçulmano Negro", espumando de ódio contra o "homem branco", talvez o discurso de 1963 fosse uma peça maniqueísta em que a luta pelos direitos civis seria apenas uma luta de negros contra brancos.
Luther King nunca comprou essa primária versão dos fatos. Como o próprio repetidamente afirmava, a luta não era entre negros e brancos. Era entre a justiça e a injustiça, independentemente da cor das vítimas e dos opressores.
Não é por acaso que, no discurso de 1963, o "sonho" de Luther King era chegar ao dia em que brancos e negros se sentariam na mesma "mesa da humanidade". Essa mensagem de "integração" seria impensável nas diatribes separatistas e violentas de Malcolm X e da Nação do Islã.
O que não significa que o radicalismo dos "Muçulmanos Negros" não tenha ajudado a causa de Luther King. Eis a terceira marca da sua inteligência: apresentar a luta pelos direitos civis como a "via média" entre dois extremismos gêmeos. O extremismo dos separatistas brancos. E o extremismo dos separatistas negros.
Na sua "Letter from Birmingham Jail", escrita no presídio anos antes da Marcha sobre Washington, Martin Luther King já era explícito na condenação daqueles que "perderam a fé na América"; dos que "repudiaram o cristianismo"; e dos que apresentam o homem branco como "um demônio incorrigível".
Tradução: se a América desejava evitar uma guerra civil racial, garantir direitos civis aos negros era melhor do que jogá-los na insurreição armada.
Felizmente, a América escutou Martin Luther King, não Malcolm X. Em 1964, o Congresso aprovava o Civil Rights Act, infligindo o golpe de misericórdia na segregação laboral, escolar, social. Os direitos eleitorais plenos viriam logo a seguir, em 1965. E hoje?
Fato: como relembra o "Wall Street Journal", o rendimento das famílias negras ainda representa 66% do rendimento das famílias brancas. Mas é também importante lembrar que, há 50 anos, metade da população negra vivia na pobreza. A cifra, hoje, ronda os 28%.
E, claro, escusado será dizer que, em 2013, a cor da Casa Branca não é mais branca.
Martin Luther King esteve na cidade em 1963 para imaginar o dia em que os seres humanos não seriam julgados pela cor da pele, mas pelo seu caráter.
Às vezes, as verdades mais antigas são as mais revolucionárias. E Luther King era esse admirável paradoxo: um conservador revolucionário. São os únicos revolucionários que eu respeito.


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

Debate sobre os médicos me dá vergonha

O perfil dos médicos cubanos é o seguinte: em geral, eles têm mais de uma década de formados, passaram por missões em outros países, fizeram residência, parte deles ( 20%) cursaram mestrado e 40% obtiveram mais que uma especialização.
Para quem está preocupado com o cidadão e não apenas com a corporação, a pergunta essencial é: essa formação é suficiente?
Aproveito essa pergunta para apontar o que vejo como uma absurda incoerência - uma incoerência pouca conhecida da população - de dirigentes de associações médicas. Um dos dirigentes, aliás, disse publicamente que um médico brasileiro não deveria prestar socorro (veja só) se um paciente for vítima de um médico estrangeiro. Deixa morrer. Bela ética.
Provas têm demonstrado que uma boa parte dos alunos formados nos cursos de medicina no Brasil não está apta a exercer a profissão. Não vou aqui discutir de quem é a culpa, se da escola ou do aluno. Até porque para a eventual vítima tanto faz.
Mesmo sendo reprovados nos testes, os estudantes ganham autorização para trabalhar.
Por que essas mesmas associações, tão furiosas em atacar médicos estrangeiros, não fazem barulho para denunciar alunos comprovadamente despreparados?
A resposta encontra-se na moléstia do corporativismo.
Se os brasileiros querem tanto essas vagas por que não se candidataram?
Será que preferem que o pobre se dane apenas para que um outro médico não possa trabalhar?
Sinceramente, sinto vergonha por médicos que agem colocando a vida de um paciente abaixo de seus interesses.


Texto de Gilberto Dimenstein, na Folha de São Paulo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Vargas e a revolução errada que o derrubou

Vargas e a revolução errada que o derrubou

O aniversário do suicídio de Getúlio Vargas, que completou 59 anos no último sábado, é e sempre será motivo de reflexões políticas indispensáveis.

Mas esta é uma conversa difícil por uma razão simples.
Poucos homens públicos e intelectuais têm contas a receber no debate sobre a herança Vargas. 
 
Muitos têm contas a pagar pelos erros e injustiças que cometeram. 
 
Um dos poucos homens públicos que tiveram a coragem de fazer uma avaliação desprovida de preconceitos e segundas intenções, o advogado e antigo ministro José Gregori, produziu linhas exemplares em seu livro de memórias, “Os sonhos que alimentam a vida”. Vale a pena recordar o que ele diz. É surpreendente. 
 
Na década de 1950, estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a  mais tradicional do país, Gregori era um líder estudantil vinculado à UDN, principal força de oposição a Vargas. 
 
O poder de sua oratória era tão grande que, certa vez, usando apenas as palavras e o apoio da plateia, o líder estudantil José Gregori conseguiu impedir um emissário de Vargas de falar aos estudantes.
 
Gregori estava na linha de frente das mobilizações que, em 1954, ajudaram a encurralar Getúlio. 
 
Nas vésperas da tragédia, estava de viagem marcada para o Rio de Janeiro, capital do país, como uma liderança que iria participar de toda agitação civil-militar para forçar a renuncia de Vargas. 
 
“Abaixo a ilegalidade! Instaure-se a legitimidade,” chegou a dizer num comício.
 
Meio século depois, o antigo líder estudantil Gregori se refere à morte de Vargas com palavras que, publicamente, nunca empregou antes. Recordando o que disse, viu e lembrou, diz no livro que com o passar dos anos chegou à conclusão de que ao participar do movimento anti-Vargas tinha “feito a revolução errada”.
 
Descreve a noite da morte de Getúlio “como a mais triste que São Paulo já viveu”. 
 
Afirma que, embora pudesse ter convicções corretas, havia participado de um movimento “contra a história”.  
 
Ao fazer essa autocrítica, diz Gregori, foi como se “me libertasse de um fantasma”.
 
O depoimento é importante quando se considera o personagem. Grande amigo de FHC, personagem destacado na luta pelos direitos humanos sob o regime militar, a atitude de Gregori chama atenção por suas companhias políticas.
 
Numa instável aproximação ideológica com o pensamento conservador organizado em torno do Estado de S. Paulo, núcleo principal do anti-varguismo no país desde 1932, intelectuais e personalidades identificadas com o PSDB ajudaram a construir e preservar a visão de Vargas como uma versão brasileira do fascismo. 
 
Essa noção se encontra em Boris Fausto, o mais importante e competente entre eles. No primeiro tomo da trilogia “Getúlio”, o escritor Lira Neto recorre a Boris Fausto para dizer que “por diferentes caminhos e diferentes conjunturas, brotaria o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal e, em certa medida, com suas especificidades, o getulismo no Brasil”. 
 
Pesquisando os jornais no dia da morte de Vargas, em seu blogue de hoje o jornalista Mário Magalhães recorda que os principais veículos fizeram um coro unânimide de oposição a Getúlio. 
 
A exceção, recorda Magalhães, era a Última Hora, jornal que o próprio presidente ajudou a lançar e financiava com ajuda de dinheiro público e empresários amigos.
 
Você vê os jornais e pode pensar que Vargas era um presidente impopular. Pode achar, como é sempre mais confortável em eventos históricos, que “deu-se o inevitável”.  Como era comum se dizer em 1964, após a morte de Jango: “Caiu de maduro”. Errado. 
 
Vargas foi um dos principais líderes políticos vinculados aos trabalhadores e aos mais pobres. Um dos poucos, em 124 anos de república.
 
Chefe de governo revolucionário, ditador, presidente eleito, deixou um legado duradouro. Simplificando: como contestar a importância da Petrobras? O que dizer dos direitos trabalhistas num país que menos 60 anos antes da CLT aceitava a escravidão? 
 
Morto um ano depois da morte de Josef Stalin,  Getúlio segue um personagem difícil de nossa história por uma razão muito simples. De uma forma ou de outra, grande parte das forças políticas em atividade naquela época atuaram para inviabilizar seu governo, forçar sua queda – passos que antecederam ao suicídio. Há algo pouco estudado na oposição a Vargas. 
 
É normal e aceitável que fosse combatido por conservadores, adversários assumidos de seu nacionalismo e sua atuação social. Estava na cartilha da UDN e seus aliados. 
 
O problema é que, em 1954, os comunistas também estavam contra Vargas. Eram diretos e radicais. A linguagem do partido era revolucionária e sua oposição a Vargas tinha tintas de muita ferocidade. 
 
Num primeiro momento, os jornais do PCB chegaram a comemorar a morte de Getúlio, aqui também tratado como ditador, como na “revolução errada de Gregori”, revoltando uma população que destruiu a redação.
 
Alinhado inteiramente ao comando do aparato comunista na União Soviética, naquele momento o PCB praticava a política da Guerra Fria. Definia Vargas como “agente do imperialismo”, para combatê-lo pela esquerda, enquanto a UDN, a Casa Branca e os demais atacavam pela direita. 
 
Comunistas e conservadores, naquele momento, eram incapazes de enxergar o país com uma nação autônoma, em busca de seu desenvolvimento e com direito à própria  soberania. Estavam convencidos, cada um a sua maneira, que era obrigatório alinhar-se e, em última análise, submeter-se.
 
Partindo de pontos de vista ideologicamente diversos, ambos chegavam a uma ação comum contra um mesmo governo. 
 
O pensamento anti-Vargas nunca teve grande aceitação popular, mas deixou ideias e conceitos que fizeram sucesso no meio acadêmico e em nossas elites políticas. 
 
Noções como “populismo” foram assumidas à direita e à esquerda, como forma de desmoralizar sua herança política, dando  caráter de demagogia a medidas de grande alcance na melhoria de vida da população, a começar pelo salário mínimo e o conjunto da CLT. 
 
Em novo casamento de conveniências, o combate à estrutura sindical, descrita como “herança fascista”, uniu adversários ideológicos em novas comunhões da vida prática, esquecidos de que boa parte da inspiração de Vargas, nesse terreno, e em outros, veio de Franklin D. Roosevelt e o New Deal. (O próprio Roosevelt achava que o New Deal devia muito ao que Vargas fizera no Brasil.)
 
À direita, Vargas e seus herdeiros eram inconvenientes porque já haviam “feito muito”. À esquerda, eram atacados porque haviam “feito pouco”.
 
Com tantas contas para ajustar, compreende-se que poucos herdeiros de nossa árvore ideológica mental tenham disposição para contar o que fizeram, falaram e ouviram. 


A mão pesada da Arábia Saudita

A mão pesada da Arábia Saudita
Enriquecida pelo petróleo, a ditadura fundamentalista se transformou no maior aliado do Ocidente
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial a história do Oriente Médio é uma história de tragédias, que geralmente tiveram como atores principais um islamismo em busca de um mítico califado e as três potências imperiais: a Grã-Bretanha e a França, que então foram obrigadas a conceder independência aos países sob seu domínio, e os Estados Unidos, a nova potência imperial.
Seu imperialismo deixou de ser formal, mas continuou presente. E o mundo, desde então, foi dividido entre o bem e o mal --entre os povos submissos e os que insistem em manter sua autonomia e por isso são "ameaças à democracia".
Os três países são ricos, já realizaram há muito sua revolução industrial e capitalista. Declaram-se, então, guardiões da democracia, e acusam os países insubmissos de serem autoritários. O que geralmente é verdade, porque são países relativamente pouco desenvolvidos, onde não há condições para uma democracia consolidada.
Seu imperialismo é particularmente violento no Oriente Médio, onde Irã e Síria são os representantes do mal, enquanto países muito mais autoritários, como as monarquias do Golfo Pérsico, são amigos, aliados, fazem parte do lado do bem.
A novidade é o papel ativo que vem assumindo a Arábia Saudita. Enriquecida pelo petróleo, essa ditadura fundamentalista, na qual o desrespeito pelos direitos humanos é incomparavelmente maior do que no Irã ou na Síria, se transformou no principal aliado do Ocidente.
Antes mesmo de as três potências decidirem intervir na Líbia, a Arábia Saudita estava financiando a revolução. Hoje, o país, onde há mais de 30 mil presos políticos, é o principal financiador da rebelião na Síria. Não fossem os sauditas, o governo ditatorial mas secularista da Síria já teria terminado uma guerra civil que já matou mais de 100 mil pessoas. Guerra civil em nome de quê? Da democracia, nos dizem os rebeldes. Mas se o fosse, a Arábia Saudita não os apoiaria.
Hoje o Egito vive uma tragédia. Seu povo realizou uma revolução democrática, mas o governo eleito não conseguiu enfrentar as crises em que o país está imerso, e foi relativamente autoritário, o que levou o povo de volta às ruas.
Desta vez equivocadamente, porque o resultado foi um golpe militar, e o assassinato de mais de mil membros da Irmandade Muçulmana que protestam contra o golpe.
Como no caso da Síria, o golpe militar no Egito conta com o apoio envergonhado das três potências e o apoio decidido da Arábia Saudita. Quando há um ano uma rebelião explodiu no Bahrein contra o regime ditatorial ali existente, quem impediu que a rebelião vencesse foi a Arábia Saudita.
No Brasil, e, mais amplamente, nos países democráticos, sentimos dificuldade em criticar as três potências, enquanto seus inimigos geralmente são regimes autoritários.
Mas o papel desempenhado pela Arábia Saudita resolve essa dúvida. Lá o Ocidente não luta pela democracia; luta apenas pelo seu poder e pela submissão dos que entendem que precisam de autonomia nacional para realizarem sua revolução industrial e capitalista e um dia poderem ser democráticos.


Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira na Folha de São Paulo.

EUA interceptaram mensagens da ONU e da União Europeia

Com base em novos documentos secretos, a revista alemã "Der Spiegel" revelou ontem que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês) interceptou comunicações da ONU, da União Europeia e de dezenas de países. A denúncia gera questionamentos sobre o acordo dos EUA de não realizar ações secretas na sede da ONU.


Reprodução da Folha de São Paulo

domingo, 25 de agosto de 2013

Favela com UPP vive estado de exceção

MARIA HELENA MOREIRA ALVES, 69, CIENTISTA POLÍTICA
Favela com UPP vive estado de exceção
Especialista afirma que cidades que receberão a Copa também vão suspender direitos constitucionais
ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULO

As UPPs (Unidades de Polícia Pacificador) implantadas no Rio de Janeiro são ocupações militares e significam um estado de exceção que ameaça a democracia.
A avaliação é da cientista política Maria Helena Moreira Alves, 69, que lança no próximo dia 28, no Rio, "Vivendo no Fogo Cruzado", livro que traz um ácido relato sobre o cotidiano de violência policial nas favelas cariocas.
Doutora em ciência política pelo Massachusetts Institute of Tecnology (EUA) e professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ela morou durante seis meses em três diferentes favelas entre 2007 e 2008. Ouviu moradores, lideranças, pesquisadores e políticos (como FHC, Lula e Cabral).
A obra, escrita com o professor de história Philip Evanson, defende mudanças no modelo policial. Na entrevista, ela fala de milícias, currais eleitorais e corrupção policial.

Folha - No seu livro a sra. fala do crescimento do número de desaparecidos no Rio. Por que o caso Amarildo galvanizou a opinião pública?
Maria Helena Moreira Alves - São 5.000 desaparecidos por ano. O caso Amarildo chama muita atenção porque a Rocinha foi uma espécie de vitrine do governo da pacificação. Colocaram a UPP, a Rocinha virou um ponto turístico. Em lugar estratégico, era o exemplo maior do sucesso da UPP. Mas a violência estava escondida.

O caso Amarildo e os ataques ao AfroReggae colocam em xeque a política de UPPs?
Terminamos o livro quando estavam começando as UPPs. Mas já dava para ver o que ia ser. O modelo da UPP não é o modelo da polícia comunitária. É uma invasão militar, com cerco da comunidade e permanente ocupação.

A UPP não tem apoio nas comunidades?
As comunidades estão começando a perder o medo. Quando estava pesquisando para o livro uma pessoa me disse: silêncio não quer dizer aprovação. Hoje há muita reação e comoção.

Onde há UPP existe um estado de exceção?
Existe um estado de exceção declarado. Isso não é interpretação, é fato. Vários direitos civis são suspensos. As pessoas são revistadas, a polícia entra e sai das casas como quer. Se suspeitam de alguém, levam embora, como foi o caso do Amarildo. Não existe direito a advogado. A polícia faz coisas que jamais faria em Ipanema, Copacabana e Leblon. Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável na zona sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs, que estão de baixo de um cerco militar. E é grave que esse modelo esteja sendo considerado para o país inteiro: a lei da Fifa vai declarar estado de exceção temporário em todas as cidades onde vai haver jogo. O estado de exceção quer dizer suspensão do direito constitucional. Isso foi o que foi feito na ditadura militar.

Não existe algo bom nas UPPs?
A ideia era o projeto do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), que é excelente. Estabelecia policiais treinados para conviver com a comunidade, não seria militarizado, não teria arma letal. Sem "caveirão", sem metralhadora e sem fuzil. Junto existiriam programas sociais, culturais e de esporte, também de treinamento e capacitação para emprego. Ficou só a parte militar, o resto foi cortado.

No livro está dito que a maioria dos policiais do Rio é corrupta. Pode ser?
Não tenho a menor dúvida. Policiais honestos são ameaçados e dizem que têm mais medo dos colegas que do tráfico. Porque podem ser mortos por colegas, se não entram no esquema corrupto.

A corrupção piora ou melhora na gestão Sérgio Cabral?
Está chegando a um ponto absolutamente crítico. Porque agora tem uma junção de milícia com bandido e com o controle da polícia nas áreas. O comando da venda de gás, do "gatonet", das vans está sendo feito agora pelas milícias. São mais de 720 comunidades com milícia. Com as UPPs ficou muito fácil para as milícias se juntarem.

UPPs não afetaram o tráfico?
É difícil saber. Afetou o tráfico pequeno, que está ali presente. O grandão está fora da favela e continua funcionando inclusive pela junção com políticos. Está ficando muito parecido com a Colômbia; é esse o meu grande medo. Veja o caso da juíza Patrícia Acioli, que teve a coragem de prender PM. Foi assassinada ao meio dia. Isso acontecia na Colômbia com frequência.

No livro a sra. trata dos tentáculos do tráfico e das milícias na política. Como está isso?
Currais eleitorais são muito graves para a democracia. Já se infiltraram na Câmara de Vereadores, na Assembleia Legislativa, Congresso. Têm uma política de eleger pessoas e também formar para o Judiciário. Está ficando parecido com a Colômbia. Exemplo: tem milícia vinculada à polícia numa comunidade ocupada. Vem o programa social que requer o cadastramento das famílias. Na hora da eleição, eles batem armados na porta das pessoas e dizem: o voto é livre e secreto, mas gostaríamos que o nosso candidato tivesse tantos votos. Se não tiver tantos votos para milícia naquela zona eleitoral, a família está perdida. É muito mais eficaz do que como faziam os coronéis.

Na sua convivência nas favelas, o que foi mais chocante?
Ter descoberto o uso da faca corvo, que foi usada na Operação Condor. Com a faca se abre a barriga, tira as vísceras e o corpo afunda e ninguém nunca mais acha.

A sra. afirma que a política de segurança pouco mudou apesar dos diferentes governos da redemocratização. Por quê?
Porque a Constituição manteve a PM militarizada. Uma das sugestões da ONU é essa: abolir a PM e ter uma polícia mais consequente, civil. No Brasil não é tão simples fazer isso porque está tudo muito misturado com a corrupção geral. Os governadores estão muito interessados em ter a PM, um exército, sob o controle deles.