O ex-ditador Hosni Mubarak governou o Egito em meio a um estado de emergência por mais de 30 anos e, agora, depois de uma pausa de dois anos, o exército egípcio fez o país retornar a esse estado novamente. O general do exército Abdel Fattah al-Sisi, que efetivamente governa o país hoje em dia, estava determinado a adotar essa medida, que pode muito bem preparar o Egito para uma guerra civil de longa duração ou, no mínimo, para os tipos de assassinatos, atentados e prisões em massa que caracterizaram o período de 1992 a 1998.
A operação para esvaziar as duas praças ocupadas por partidários do presidente Mohammed Mursi, deposto após manifestações em massa realizadas em julho passado, se transformou em um massacre total. O preço da chamada "operação de limpeza" tem sido centenas de vidas, até mesmo entre as forças de segurança do governo.
Confrontos armados ocorreram não só no Cairo, mas também em muitas outras cidades do Egito, onde houve um recuo após a queda e a prisão de Mursi. A Irmandade Muçulmana e os apoiadores de seus aliados atacaram igrejas de cristãos coptas em muitas cidades e as incendiaram. O exército, por outro lado, está perseguindo os simpatizantes da Irmandade Muçulmana.
Hazem Al Beblawi, o primeiro-ministro interino do Egito, teve uma reação muito diferente da do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan, que caracterizou o derramamento de sangue como terrorismo de Estado. Al Beblawi disse que a polícia demonstrou um "heroísmo lendário" ao esvaziar as praças, alegando que a polícia agiu "com extrema cautela".
Ironicamente, a justificativa dele para a operação do exército foi muito semelhante à de Erdogan durante a recente agitação civil na Turquia. "Nenhum estado de respeito permitiria que duas de suas praças fossem ocupadas por milhares de manifestantes durante um mês e meio", disse Beblawi.
Apesar de o primeiro-ministro interino do Egito ter afirmado que o uso da violência e a instauração subsequente do estado de emergência foram "medidas necessárias para possibilitar a realização de eleições livres", é muito mais provável que o Egito se mantenha em estado de emergência durante um longo período. O primeiro-ministro egípcio se mantém leal ao roteiro do exército local, uma vez que foi o exército que lhe entregou o poder em primeiro lugar. Beblawi disse que o governo está determinado a realizar eleições até o início de 2014, mas ninguém acredita que o Egito estará livre e seguro o suficiente para a realização de eleições dentro de alguns meses.
Essa segunda intervenção do exército egípcio também foi um duro golpe para os chamados liberais, como Mohammed ElBaradei, que estava em busca de uma terceira via entre o exército e a Irmandade Muçulmana antes do massacre. Esses círculos já perderam muita credibilidade após terem ficado de rodeios e não terem chamado o golpe de golpe e ao aceitarem cargos ministeriais --o de vice-presidente, no caso de ElBaradei. Agora, como já fez ElBaradei, outros liberais também terão que se demitir e compartilhar a responsabilidade pelo massacre. A renúncia de ElBaradei enquanto o estado de emergência estava sendo instaurado foi uma medida necessária para salvar sua própria dignidade, mas talvez ela tenha vindo tarde demais para salvar seu futuro político.
Um estado da Irmandade Muçulmana
Hoje, um segmento da população egípcia apoia o exército contra a Irmandade Muçulmana. Os coptas egípcios, ou cristãos, e a Igreja Copta formam o principal contingente entre esses apoiadores, pois eles são os alvos naturais da Irmandade Muçulmana e de outras organizações jihadistas mais radicais. Assim como alguns cristãos sírios consideram o Partido Baath e a ditadura de Bashar Al-Assad como o menor de dois males, essas pessoas veem o exército egípcio como a última chance para manter sua segurança.
As preocupações dos coptas se mostraram justificadas quando igrejas e edifícios coptas foram alvo, ao lado de edifícios do governo e das forças de segurança, durante as manifestações da semana passada. Um segmento da classe média urbana tem preocupações semelhantes e também está ao lado do exército. Além disso, como os Irmãos Muçulmanos favoreceram seus próprios partidários e alienaram a classe média secular durante o governo de um ano de Mursi, essa mesma classe média vê o exército como uma forma de preservar sua situação econômica e seu modo de vida.
Mas esses segmentos da sociedade são insuficientes para formar a maioria no Egito. Por outro lado, a Irmandade Muçulmana pode recuperar o prestígio, que foi perdido durante seu governo de um ano como resultado de sua falta de tato, da atitude paternalista e da pressa em criar um Estado da Irmandade Muçulmana.
As prisões e os assassinatos em massa podem ter garantido aos islâmicos um pouco de simpatia, mas vai ser muito difícil eles conseguirem se reorganizar, pelo menos por alguns anos. O espaço que eles deixarão será preenchido por outras organizações, muitas das quais podem ser mais radicais. Em suma: haverá "terroristas" e "atentados terroristas" suficientes para prolongar o estado de emergência por tempo indeterminado no Egito.
O mundo ocidental que hoje condena as ações violentas do exército na limpeza das praças egípcias se aliará com o exército amanhã, quando os assassinos e os homens-bomba atacarem os coptas, um pequeno grupo ou turistas que se atreverem a visitar o Egito, ou o exército e a polícia diretamente.
Quatro dias depois de o exército ter derrubado Mursi, eu escrevi um artigo dizendo que o monarca tinha demitido o vizir. O monarca, isto é, o exército egípcio, tirou Mursi, o vizir, do poder quando sua propriedade estava em perigo. Agora nós entramos em um período de domínio militar direto, assim como o ano que se seguiu à derrubada de Hosni Mubarak.
A coalizão em torno do exército e de seus partidários já foi quase que totalmente dissolvida. O exército egípcio será alvo da oposição da sociedade e das demandas por democracia a partir de agora. Isso significa que praticamente todo o Egito estará na mira, assim como a maior parte de sua economia.
Eu escrevi há um mês que a revolução é uma saída radical para que os países se livrem de monarquias absolutas, de ditaduras e de regimes totalitários --o fim de um regime financeiro-social e o início de outro. Portanto, a revolução no Egito continua. A afirmação que eu fiz no final daquele artigo é muito mais válida hoje em dia: "A etapa final dessa revolução será o destronamento do monarca real [o exército]". Será que essa revolução dará à luz uma democracia no curto prazo? Não há nenhuma garantia de que isso ocorrerá. O resultado dependerá principalmente da evolução da Irmandade Muçulmana.
Ahmet Insel, para o The New York Times, www.worldcrunch.com em parceria com Radikal,
Tradutor: Cláudia Gonçalves
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