Caía sobre Washington uma chuvinha melancólica no dia em que Nixon renunciou. Confesso que me emocionei com o adeus daquele homem que tinha sido o mais poderoso do mundo e perdia tudo por haver abusado do poder na Guerra do Vietnã e no escândalo de Watergate.
A reação do país aos abusos foi indignada e vigorosa. O Congresso impôs limites estritos às operações clandestinas no exterior --contra Angola, por exemplo. No Senado, uma comissão presidida pelo senador Frank Church, que morreria prematuramente, investigou as sistemáticas violações de direitos pelas agências de inteligência.
Praticamente tudo o que agora causou espanto nas revelações de Edward Snowden já tinha vindo à luz nos depoimentos à comissão. Soube-se que a quase desconhecida National Security Agency (NSA) possuía de longe o maior orçamento das 16 agências americanas de inteligência. Sua missão era, já então, monitorar todas as comunicações telegráficas e telefônicas, decifrando os códigos das embaixadas estrangeiras, cujas sedes eram violadas por agentes disfarçados de funcionários das empresas de telecomunicação ou de operários incumbidos de reformas.
Eu era conselheiro de nossa missão nos EUA e lembro que mandamos todas as informações ao Itamaraty. Quando voltei como embaixador, em 1991, assumi como hipótese que tudo o que eu dizia ao telefone ou transmitia ao Brasil, cifrado ou não, poderia ser facilmente interceptado, dada a superioridade dos meios tecnológicos americanos.
Aproveitei a situação para criticar em linguagem não diplomática o que me parecia absurdo na política exterior de Washington (em particular, a campanha de subversão contra o governo legal e eleito de Angola e o apoio à guerrilha da Unita, de Jonas Savimbi). Nunca acreditei que a lei aprovada pela comissão do Senado proibindo as escutas e violações tivesse sido obedecida.
De qualquer modo, a questão se tornou acadêmica ao se adotar o Patriot Act, legislação antiterrorista de 2001, após os atentados às Torres Gêmeas. De novo o pêndulo se moveu em favor de privilegiar a segurança em detrimento da privacidade e dos direitos individuais.
Desta vez foi pior do que 40 anos atrás. O desastroso epílogo da Guerra do Vietnã e o choque com os métodos criminosos de Watergate haviam desmoralizado a justificativa das agências de espionagem. A sociedade americana, quase de forma unânime, condenou o recurso abusivo a operações clandestinas.
Hoje duvido que a maioria americana, traumatizada duravelmente pela ameaça do terrorismo islâmico, opte por abrir mão da espionagem cibernética devido às revelações de Snowden. Assim como não vai querer renunciar aos "drones" para matar à distância, de modo seguro, terroristas reais ou supostos.
A tendência inelutável do poder, ensinavam os teóricos do realismo, é jamais ficar ocioso. Domar o poder por meio de estritos freios legais é a essência do processo civilizatório. Contudo, como voltamos a ver, inclusive em prejuízo do Brasil, convém não se fiar nas promessas e lutar para que a lei internacional possa um dia submeter efetivamente o arbítrio dos poderosos.
Texto de Rubens Ricupero, para a Folha de São Paulo.
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