O mais avassalador na tragédia em que o Egito está se afundando não são as mesquitas transformadas em necrotérios, as mulheres e as crianças metralhadas, os feridos morrendo em leitos de hospital. O mais assustador não são as ruas devastadas, as igrejas incendiadas e a propaganda de ódio despejada pela mídia. Não, o mais terrível é o fato de que militares e islamitas estão levando o Egito 60 anos para trás. Assim como em seu implacável confronto de 1952-1954, eles estão se preparando para arruinar as aspirações populares ao progresso e à emancipação.
Em 1952, a revolução dos oficiais livres, apoiada pela Irmandade Muçulmana, derrubou uma monarquia desacreditada. Esse golpe de Estado colocou um fim a 30 anos de um parlamentarismo imperfeito, mas pluralista. Em 1954, Gamal Abdel Nasser (1918-1970), ex-membro da Irmandade Muçulmana, se voltou contra seus aliados e os reprimiu. O complô totalmente inventado na época em Alexandria não resistiu, assim como as acusações de conspiração com o Hamas fabricadas hoje para manter o presidente Mursi detido.
O exército perdeu todas as guerras que ele conduziu ou que lhe foram impostas. Ele afundou até um terço de suas forças ao lado dos republicanos do Iêmen, antes de se retirar ingloriamente em 1970. E mesmo a incrível travessia do canal de Suez em 1973 terminou com o cerco de parte do corpo expedicionário no Sinai, obrigado a fazer um cessar-fogo para não morrer de sede. Em compensação, assim como tantos outros exércitos árabes, as forças egípcias foram impiedosas contra sua população, em nome de um "estado de emergência" continuamente renovado.
A paz acordada com Israel em 1979 permitiu que o exército egípcio reunisse uma colossal ajuda americana, da ordem de mais de US$ 1 bilhão por ano. Os militares egípcios, protegidos de qualquer conflito exterior, puderam assim se dedicar a lucrativos negócios no comércio, na indústria e no mercado imobiliário. As fontes que lhes atribuem o controle direto ou indireto de um terço da economia egípcia são inverificáveis, em um domínio em que prevalecem a opacidade e o nepotismo. As veleidades de Hosni Mubarak de confiar sua sucessão a seu filho Gamal, ponta de lança de uma geração de empresários "liberais", suscitaram discórdia na cúpula das forças armadas.
Houve dois golpes de Estado militares no Egito. O primeiro, no dia 11 de fevereiro de 2011, resultou na deposição do presidente Mubarak; o segundo, em 3 de julho de 2013, na de Mohammed Mursi. Mubarak reinava sozinho havia 30 anos, reconduzido ao comando do Estado por plebiscitos acertados previamente. Mursi foi o primeiro chefe de Estado democraticamente eleito do Egito, após uma disputada votação em 2012. Esses golpes foram precedidos da mobilização de multidões imensas. Nos dois casos, os militares deturparam, a seu favor, esses protestos populares e pacíficos.
Na verdade, foi o marechal Hussein Tantawi que assumiu o poder executivo à frente do Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA), com a queda de Mubarak. O general Abdel Fattah al-Sissi era o mais jovem membro dessa junta. O temor dos revolucionários egípcios era ver o CSFA e a Irmandade Muçulmana entrando em um acordo às custas deles. De fato, os apelos por uma "segunda revolução" foram se amplificando a partir do outono de 2011, apesar da sangrenta repressão desses movimentos de protestos. E o CSFA sabotou a transição para continuar controlando a maior parte do governo.
Foi assim que as legislativas de dezembro de 2011-janeiro de 2012, vencidas pela Irmandade Muçulmana, se esvaziaram de sua substância: o governo continuava sendo somente uma emanação do CSFA, o que tornou mais dramático o resultado das presidenciais de 2012. Os militares no fundo apostavam na polarização entre o candidato da Irmandade Muçulmana e o deles, o ex-general Chafik, último chefe do governo de Mubarak. Mas a política do CSFA se voltou contra ele e Mursi o venceu com 51,7% dos votos.
A cúpula militar, que por um momento ficou tentada a rejeitar o veredicto das urnas, teve de admitir a derrota. Tantawi se aposentou em contrapartida à nomeação de Al-Sissi como ministro da Defesa. O general que fingia ser lealista desde então não parou mais de conspirar contra a Irmandade Muçulmana, pela qual ele sente um ódio inextinguível. A Arábia Saudita, onde ele serviu como adido de Defesa, o encorajou nesse caminho. Riad e Abu Dhabi, já contra-mestres da revolução em Bahrein, em março de 2011, subsidiaram o trabalho de solapamento dos militares egípcios.
Quanto ao presidente Mursi, ele se revelou incapaz de se distanciar da influência da Irmandade Muçulmana, que, sob comando de Khairat al-Chater, o número dois do movimento, deu prioridade absoluta aos interesses da organização em detrimento dos da nação.
Uma abertura sincera às correntes liberais e nacionalistas se revelou impossível, enquanto os radicais islamitas iam multiplicando seus "feitos". A Constituição, imposta pela presidência em dezembro de 2012, obteve uma maioria por referendo, mas continuou sendo considerada ilegítima por muitos egípcios.
A Irmandade Muçulmana, em pânico por causa do precedente da repressão de 1954, acentuou seu sectarismo. O general Al-Sissi apostou na crescente impopularidade dela e a agravou através de falsas crises de escassez. Ele camuflou seu golpe instalando fantoches à frente do Estado. Durante o mês do ramadã, ele encenou a comédia das mediações internacionais antes de cantar vitória no dia 14 de agosto. A repressão às manifestações que pediam pela restauração do presidente eleito reavivou o mais virulento dos martirológios. Os islamitas preservaram assim sua herança doutrinal, não sem antes jogar a minoria copta na cova de seus partidários desorientados.
Os militares derrotaram através das armas a resistência desesperada da Irmandade Muçulmana. Mas esse sangrento triunfo seria a pior das derrotas porque a junta terá fechado assim as portas para a integração dos islamitas ao jogo institucional, relegando-os unicamente para a ação violenta. Esse desastre terá efeitos duradouros muito além das fronteiras do país, comprometendo em todo o mundo árabe as chances de uma transição democrática, baseada na harmonia entre as visões nacionalistas e islamitas do pacto coletivo.
O egípcio Ayman al-Zawahiri, sucessor de Bin Laden em 2011 no comando da Al Qaeda, poderá proclamar vitória a partir do santuário paquistanês onde está enfurnado. Preso e torturado pelos militares egípcios em 1981, solto e expulso três anos mais tarde, ele condenava continuamente a opção legalista da Irmandade Muçulmana.
A junta do Cairo está alimentando a propaganda jihadista. E ela provavelmente vai alimentar uma onda terrorista de escala regional. O exército está assumindo uma responsabilidade esmagadora nessa imensa bagunça. Mas nem de longe será o único a pagar o exorbitante preço dela.
Texto de Jean-Pierre Filiu, professor da Science Po de Paris, para o Le Monde, reproduzido no UOL.
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