Judeus e palestinos têm luta diária em bairro de Jerusalém
Famílias palestinas dividem propriedades com colonos israelenses em Sheikh Jarrah, área sob disputa judicial
Líder dos colonos refuta ceder o bairro a um futuro Estado palestino no diálogo de paz: 'Isso não pertence aos árabes'
O refugiado palestino Nabil al-Kurd, 69, senta-se no jardim do terreno em que vive desde 1956, em Jerusalém.
Ele abre um livro e se põe a ler. Em seguida, um judeu ortodoxo abre a porta de uma das duas casas na propriedade e caminha rumo à rua. "Lá vai o cachorro", comenta Kurd, sem se distrair.
Desde 2009, essa família palestina vive ao lado de colonos israelenses, na mesma propriedade. Eles moram em construções vizinhas, cercados pelo mesmo muro e um só portão, forçados pela Justiça a conviver diariamente.
Poderia ser um "reality show" no estilo "Minha Casa, Sua Casa", mas a história dos 12 membros da família Kurd tornou-se um símbolo da ocupação do território palestino --e um dos empecilhos às negociações de paz com Israel, que foram retomadas há pouco e terão uma nova etapa a partir do dia 14, também em Jerusalém.
Eles vivem em uma das 28 casas disputadas no bairro de Sheikh Jarrah, onde diversas famílias já foram expulsas por ordem judicial. É esperado que, nas próximas semanas, o clã Shamasne perca sua propriedade na Justiça, agravando o atrito.
Para além da questão legal, a disputa por Sheikh Jarrah é vivida cotidianamente por essas famílias. A Folha visitou o bairro em diversas ocasiões nas últimas semanas, e em nenhuma vez presenciou contato amigável entre ambas as partes.
Kurd aponta para um lençol estendido na frente de uma das janelas. "Os jovens colonos abrem as janelas e tiram a roupa, nos dizendo coisas obscenas." O anexo de sua casa é, atualmente, habitado por um grupo rotativo de estudantes de yeshivá, uma espécie de instituição religiosa judaica.
CONSTRUÇÃO
O conflito na propriedade da família Kurd começou em 2001, quando Nabil construiu um anexo à casa em que vivia desde os anos 50.
Por ter sido erguida sem autorização da Prefeitura, a obra foi embargada por oito anos. Até que a Corte israelense decidiu que a segunda metade da casa da família seria habitada, legalmente, por um grupo de colonos.
A partir de então, começaram as disputas diárias. Ambos os lados narram ter sido vítimas de violência, incluindo a acusação de que a mãe de Nabil, aos 93 anos, teria agredido um jovem colono. Uma irmã de Nabil teve de ser levada ao hospital, depois de ser espancada.
"Eu odeio quando alguém diz que eles são meus vizinhos", afirma Muhammad al-Kurd, 15. "Às vezes os colonos cospem nas minhas irmãs, na minha avó", conta.
DESCONSTRUÇÃO
Os estudantes israelenses que moram na propriedade da família Kurd se recusam a conversar com a reportagem. A questão só é discutida por Yonatan Yosef, 33, líder dos colonos de Sheikh Jarrah. Ele é neto de Ovadia Yosef, líder espiritual do partido Shas. Seu tio foi recentemente eleito rabino-chefe de Israel.
Ele diz que a casa é ocupada por jovens, sob o pagamento de aluguel simbólico a uma instituição judaica, porque "ninguém mais quer viver com a família Kurd".
"São estudantes que não têm dinheiro para morar em Mea Shearim", afirma, referindo-se ao bairro ultrarreligioso de Jerusalém.
Yosef diz ser impensável que bairros como Sheikh Jarrah façam parte de um futuro Estado palestino. "Isso não pertence ao povo árabe."
Em seguida, Yosef ensina uma expressão em hebraico: "Slicha shenitzachnu". "Perdão se vencemos", afirma Yosef, em referência à Guerra dos Seis Dias, de 1967, quando Jerusalém Oriental foi ocupada.
Colonos veem palestinos como 'inquilinos protegidos'
DE JERUSALÉM
Ocupado por Israel em 1967 durante a Guerra dos Seis Dias, o diminuto bairro de Sheikh Jarrah representa, além de um microcosmo do conflito entre árabes e israelenses, um dos futuros entraves às negociações de paz.
A região em disputa é, para ativistas de direitos humanos, exemplo de legislação que discrimina palestinos.
Segundo os colonos que reivindicam essa região desde os anos 1970, as propriedades em Sheikh Jarrah foram compradas por organizações judaicas no século 19.
Os terrenos foram, no entanto, entregues em 1956 a 28 famílias de refugiados palestinos em um acordo entre a ONU e o governo da Jordânia, que à época tinha o controle de Jerusalém Oriental.
Em 1982, foi firmado um acordo entre ambas as partes, estipulando que os palestinos reconheciam a propriedade como judaica mas passavam a ser considerados "inquilinos protegidos". Ou seja, eles só poderiam ser despejados caso rompessem com um contrato de aluguel.
As famílias palestinas se recusam a pagar aluguel em uma propriedade que consideram ser sua por direito.
As expulsões ocorrem quando os contratos não são respeitados. No caso da família Kurd, pela construção ilegal de um anexo.
Hoje, a legislação permite que um colono volte a um terreno que possuía no século 19 mas impede um palestino de retornar à casa da qual foi expulso em 1948, com a criação do Estado de Israel.
Para o advogado Danny Seidemann, especialista em Jerusalém Oriental, a questão é mais moral do que legal. "É, problemática uma lei aplicada a um Estado binacional, em uma cidade sob ocupação, que permita que o ocupador recupere propriedades mas impeça o ocupado de fazer o mesmo." (DB)
Reproduções da Folha de São Paulo. Linques:
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