Aqui e ali, a propósito das manifestações nas ruas e do vandalismo de alguns grupos em diversas cidades brasileiras, volta e meia há referências explícitas ao anarquismo, que muitos, da esquerda ou da direita, acham completamente fora de moda, como a virgindade, o samba-canção e o Hydrolitol.
Com a chegada dos anos, comecei a fazer coisas que detestava, culminando com um discurso quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras. Amigos pediram que eu me definisse ideologicamente, e fui buscar em Eça de Queiroz, nas suas "Notas Contemporâneas", um trecho que sempre usei como meu:
"A presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criança sem pão, a incapacidade da Monarquia e da República, da Ditadura e da Democracia para realizar a única obra urgente do mundo, a casa para todos, o pão para todos, lentamente me tem tornado um vago anarquista, um anarquista entristecido, humilde e inofensivo".
Quando alguém se refere ao anarquista, pensa-se na anedota do espanhol ("?Hay gobierno acá? Entonces soy contra"). Bombas jogadas em creches, descarrilamento de trens, profanações de cemitérios e igrejas, empastelamento de jornais --a imagem do anarquista é, acima de tudo, a de um ofensivo, em defesa ou em ataque a determinado sistema ou credo.
O que seria então um anarquista inofensivo, como se intitulou o autor de "A Ilustre Casa de Ramires", seu livro que mais aprecio, do qual roubei impunemente a expressão?
Para falar a verdade, não sei. É como me sinto desde que tomei conhecimento da sociedade, nobreza, clero e povo.
Não fui consultado quando fizeram a bandeira nacional. Mudaria o dístico: não aprecio a ordem e sempre desconfiei do progresso. Mas sou preguiçoso e, por isso, inofensivo.
Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo.
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