Sob o império do cérebro
Avanços no mapeamento da atividade cerebral reanimam a sugestão de que somos marionetes da genética
Anos depois de libertado, um ex-detento senta de novo no banco dos réus. Voltou a furtar, é o que dizem. Como estamos falando de um reincidente, o juiz achou por bem descobrir se há algo de errado no cérebro do acusado. A perícia informa que ele tem um córtex cingulado anterior (ACC, na sigla em inglês) preguiçoso. Agora a acusação pede perpétua, porque um córtex dessa lavra não merece lugar entre os cidadãos de bem (os bem-acerebrados, diga-se), e a defesa vai se vacinando com a tese de que ninguém tem culpa por nascer com um parafuso a menos: o réu não passa de um robô programado para furtar.
Nosso julgamento é imaginado, mas a perícia se baseia em um estudo bastante real e recente, liderado pelos neurocientistas americanos Kent Kiehl e Eyal Aharoni. Eles monitoraram a atividade cerebral de 96 apenados e constataram que aqueles com ACC menos ativo tinham duas vezes mais chances de voltar a cometer crimes nos quatro anos seguintes à libertação. Como essa parte do cérebro está relacionada ao aprendizado com erros, seria possível dar uma espiada nos neurônios para conferir se alguém vai pisar na bola outra vez.
Não admira que o trabalho de Kiehl e Aharoni venha sendo comparado ao filmeMinority Report, em que a polícia consegue enxergar o futuro e prender indivíduos que (ainda) não cometeram crime nenhum. Se ter o futuro inscrito na massa encefálica parece muito ficção científica, segue um exercício: espere um tempo e, num instante aleatório, mova um dedo. Qualquer dedo. Segundo o fisiologista Benjamin Libet, a decisão consciente de mover esse dedo foi precedida em cerca de meio segundo por uma atividade cerebral inconsciente. Você acha que moveu o dedo porque quis, mas apenas correu atrás de um fenômeno eletroquímico. Depois da pesquisa de Libet, nos anos 1980, pipocaram previsões cada vez mais ousadas, e em 2008 já havia neurocientistas antecipando a ação humana em até 10 segundos.
Hoje, palavras como "neuromarketing" e "neuroeconomia" povoam as estantes debest-sellers, e multinacionais estudam o cérebro para excitar emoções positivas em consumidores. Autor do livro A Anatomia da Violência, o psicólogo britânico Adrian Raine culpa a genética por metade dos crimes violentos. O neurocientista Sam Harris vai mais longe e decreta que sua área de estudo sepultou o livre-arbítrio, e os psicólogos John Greene e Jonathan Cohen engrossam o caldo: o livre-arbítrio, eles dizem, não passa de "uma ilusão gerada por nossa estrutura cognitiva", ou seja, o delírio com um parafuso que nenhum de nós tem.
Na Trilha da Inclusão Ainda que você consiga dormir tranquilo com a ideia de que tem o destino garranchado pela genética, é provável que acorde num mundo esquisito: o nosso sistema de leis depende de alguma noção de livre-arbítrio. Não atribuímos responsabilidade moral a crianças, recém-chegadas nesta vida de "certos" e "errados", nem a vítimas de transtornos mentais, por exemplo. Num caso clássico da literatura jurídica, o americano Donta Page, que confessou ter estuprado e matado a facadas uma jovem em 1999, escapou da pena de morte e foi sentenciado à prisão perpétua. A defesa alegou que espancamentos durante a infância haviam danificado o cérebro de Page. Ele não tinha escolha senão ser violento. Acontece que, se Harris, Greene e Cohen estiverem certos, acordamos num mundo em que o poder de escolha é uma ilusão. Como julgar quem é um refém mecânico do próprio cérebro?
Segundo o professor da Faculdade de Direito da UFRGS, criminologista e desembargador aposentado Odone Sanguiné, o futuro que a neurociência acena para a Justiça Criminal é de reformas inclusivas, que levem em conta o princípio da dignidade humana.
- O diálogo com os conhecimentos das neurociências está provocando uma revisão das categorias dogmáticas do Direito Penal, bem como uma rediscussão sobre a legitimação das penas e medidas de segurança - afirma.
Em vez de desembocar em polícias da biologia e prisões abarrotadas de condenados pelo crime de nascer com um córtex indesejado, uma melhor compreensão da estrutura cerebral pode, ao contrário, facilitar a reintegração social.
- A ressocialização de apenados não depende exclusivamente do encarceramento, pois a prisão é criminógena e dessocializadora. A inclusão e o retorno de egressos à sociedade sem reincidência depende mais da manutenção de vínculos familiares, de políticas públicas de serviços assistenciais pós-penitenciários e da participação de ONGs - diz.
Além disso, não é somente a neurociência a reformar o Direito. Segundo Sanguiné, essa via tem duas mãos.
- A interação interdisciplinar é produtiva, cabendo destacar que inclusive alguns neurocientistas alemães mitigaram suas posições iniciais, formulando hipóteses em colaboração com penalistas e filósofos - destaca.
Não Tem Bola de Cristal Kent Kiehl já atuou como consultor em mais de cem casos criminais nos Estados Unidos. Em entrevista por e-mail, ele e o colega de pesquisa Eyal Aharoni sustentaram que o mapeamento da atividade cerebral, "como todo outro resultado científico, deve apenas ser usado como evidência em tribunais se preencherem padrões estabelecidos de validade e admissibilidade".
"Nenhuma medida isolada pode ou deve ser usada para tomar decisões sobre o bem-estar de alguém", afirmam, emendando que a descoberta neurobiológica de que alguém tem chances de repetir um crime não significa que essa pessoa esteja fadada a exibir essa conduta.
"Como em toda pesquisa científica, nosso conhecimento sobre a relação entre funções cerebrais e comportamento antissocial é apenas probabilístico. O grau de precisão dessas previsões deve ser cuidadosamente examinado antes que possa ser aplicado a transgressores individuais", alertam.
Kiehl e Aharoni não são vozes solitárias entre os neurocientistas. Mesmo Adrian Raine, que levanta a bola da "neurocriminologia", reconhece que "biologia não é destino". Para o neurologista e diretor do Instituto do Cérebro da PUCRS, Jaderson Costa da Costa, ações simples, como mover um dedo, até podem estar sujeitas a previsão, mas "o cérebro é extremamente plástico, adaptável" e "sempre lhe restará muito de imprevisibilidade". Assim, seria perigoso incentivar uma política de intervenção médica para impedir a ocorrência de crimes.
– A mesma tecnologia poderia ser utilizada inadequadamente para controle do comportamento humano. No momento, há uma enorme distância entre o "conhecer" e o "intervir".
A preocupação do Dr. Jaderson encontra expressão no livro mais conhecido de Anthony Burgess, Laranja Mecânica, sátira distópica em que cientistas reprogramam o cérebro de um criminoso para torná-lo incapaz de qualquer ato violento. Uma laranja mecânica, explica Burgess, é uma entidade orgânica, cheia de suco e doçura e perfume, transformada em autômato. Ao arquitetar o autômato paz-e-amor, joga-se o bebê fora junto com a água do banho: ralo abaixo vai o crime, mas também o livre-arbítrio.
A Cultura Paga a Fiança Cornetas soprando o fim do livre-arbítrio não são novidade. O problema veio à baila, ao longo da História, na esteira das tentativas de localizar a consciência. Do mesmo modo, os gritos de que somente a natureza determina a identidade sempre foram rebatidos por mostras de que a educação, a linguagem, o dinheiro no bolso repercutem no comportamento.
Para ficarmos num exemplo recente, pesquisadores da Universidade de Berkeley divulgaram que, em relação a quem dirige carros modestos, motoristas de automóveis de luxo têm quatro vezes mais chances de avançar sobre a faixa de segurança enquanto um pedestre tenta atravessar. O mesmo time de cientistas monitorou partidas de Banco Imobiliário com regras favoráveis a um dos jogadores. Os privilegiados enriqueciam rapidamente e, depois do jogo, eram os participantes que afirmavam com maior convicção que mereciam a vitória. Condições econômicas, o estudo conclui, trazem consigo um conjunto de valores.
E se "valores" não forem mais que um bate-papo entre neurônios? Para Daniel Dennett, não haveria nada a temer. Em visita a Porto Alegre em 2010, o filósofo observou que os avanços da neurociência só tiram o sono de quem quer preservar um tipo de livre-arbítrio que, para começo de conversa, nós nunca tivemos. Dennett considera que a Teoria da Evolução jogou uma última pá de cal na ideia de que a consciência habita uma "alma imaterial", mas isso não significa que Darwin ou os neurocientistas nocauteiem o livre-arbítrio.
O que temos, diz Dennett, é uma "alma informacional" fisiológica que aprende por repetição, "instalando" informação cultural no cérebro. Por que é absurdo que crianças sejam presas? Porque elas precisam de tempo para "instalar", por repetição, os aplicativos culturais que as libertem da ditadura daqueles "impulsos inconscientes" observados por Libet. Dennett está dizendo que não somos meras marionetes a mando da genética - também somos seres sociais.
Chegando à cultura pela via evolucionista, Dennett reconcilia áreas que nem sempre se tocam. Não é para menos: uma leitura torta da obra de Darwin já serviu para justificar o genocídio como método de "aperfeiçoar" a espécie. O nazismo, sugeriu a cientista política Hannah Arendt, desumanizou não só os judeus, como os próprios soldados alemães, transformados em autômatos. O exército nazi, assim, não seria convenientemente composto de cérebros programados para o mal, e sim de indivíduos privados da capacidade de pensar.
A descoberta da plasticidade do cérebro, do seu poder de se remodelar conforme a experiência, permite à neurociência não apenas colocar o livre-arbítrio em xeque, como também o exato oposto: se somar a Arendt no incentivo à liberdade e à diversidade do pensamento. E, se a versão de Dennett para o livre-arbítrio incomoda - trocar uma "alma imortal" por um "organismo que aprende por repetição" parece mau negócio -, ela segue como mais um lembrete de que somos seres complexos, irredutíveis a apenas natureza ou cultura.
- A resposta não pode ser reduzida a um binômio: perspectiva individual ou social. Émile Durkheim escreveu que o crime é inerente a qualquer sociedade saudável, embora mude sua forma de manifestação. É impossível eliminá-lo da estrutura social - diz Sanguiné, arrematando que caminhamos para uma "integração, ou seja, estabelecer fatores correlacionados com a produção da criminalidade".
Reprodução de texto de Demétrio Rocha Pereira, no jornal Zero Hora.
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