O melhor do que o Brasil é hoje e boa parte do que ele ainda não conseguiu ser se deve à herança ou ao sonho de um homem nascido no dia de Santo Antonio, 250 anos atrás, na vila de Santos. José Bonifácio não foi apenas um dos primeiros a perceber que a independência se tornara inevitável. No momento decisivo, os 18 meses entre janeiro de 1822 e julho de 1823, foi quem a fez possível, criando o Estado brasileiro sob a forma da monarquia constitucional moderada e centralizada.
Sabia que só o comando de um príncipe garantiria ao novo poder a legitimidade capaz de desarmar resistências e evitar a tragédia de guerras atrozes como as que esfacelaram a unidade da América espanhola. No imenso território então chamado de "os Brasis" em razão da diversidade e da falta de comunicação, não tardariam a surgir os caudilhos que retalhariam entre si o patrimônio nacional.
Não se fiando apenas na autoridade de Pedro 1º, organizou o Exército e criou a Marinha com os quais foram submetidas tropas portuguesas na Bahia, no Maranhão e no Pará. Em estudo sobre sua atuação como primeiro chanceler, o diplomata e historiador João Alfredo dos Anjos demonstrou que Bonifácio antecipou a união latino-americana ao propor aliança defensiva do continente contra o colonialismo europeu. Não aceitou pagar concessões humilhantes pelo reconhecimento, como depois o fez o imperador.
Na última conferência que proferiu, em Paris, pouco antes de morrer, José Guilherme Merquior lembrou que Bonifácio sonhou o primeiro projeto de Brasil moderno. Propunha extinção do tráfico de escravos e abolição da escravidão, tratamento humano e integrador para com os índios, divisão dos latifúndios em pequenas e médias propriedades. Original como cientista num continente de militares e advogados, dedicava espaço prioritário no projeto à abertura de minas, à promoção da siderurgia e da metalurgia, ao fomento da indústria por meio de financiamento do Banco do Brasil.
Seus escritos de advertência contra a destruição das matas e os métodos predatórios da agricultura conservam atualidade e poderiam ser usados no debate sobre o Código Florestal. Antevia, no futuro, um povo unificado pela miscigenação e civilizado pelo acesso à educação. Como observou sua biógrafa Miriam Dolhnikoff, traçou o retrato do que o Brasil ainda não deixou de ser ao afirmar que "A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza".
Com tais ideias, comentou Joaquim Nabuco em "O Abolicionismo", não poderia mesmo durar no poder. Os setores ligados à propriedade escravocrata que dominariam o país nas décadas seguintes abominavam a coerência do homem que se orgulhava em carta de construir sua casa só com trabalho livre e alugado.
Merece ser chamado de "o primeiro brasileiro", até no temperamento, nos gostos e na capacidade, conforme testemunhou Eschwege, de "dançar magistralmente o lundu africano"...
Ao iniciar-se a contagem regressiva para os 200 anos da independência, oxalá o Brasil faça finalmente jus ao sonho de José Bonifácio, completando o projeto que teve de deixar inacabado.
Texto de Rubens Ricupero, publicado na Folha de São Paulo.
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