Entre 2004 e 2010, o Brasil viveu seu mais intenso processo de ascensão internacional.
Isso ocorreu porque Lula teve a fortuna de um ambiente global favorável e a virtude de um projeto de política externa talhado para galgar posições no mundo.
A diplomacia foi posta a serviço de sua obra-prima: um capitalismo politicamente orientado e integrado aos fluxos da globalização; um raro alinhamento entre capital, sindicalismo e massas emergentes; e a redução de hipotecas sociais de modo gradual e sem rupturas.
Só que os ventos mudaram e problemas diplomáticos se acumularam antes mesmo de Lula deixar o Planalto, tirando fôlego da ascensão.
Agora, os gigantescos protestos de rua revelam o que há de trincado no lulismo e encerram o modelo da ascensão tal qual o conhecemos nos últimos anos.
A retomada da trajetória ascendente, quando ocorrer, terá de ser feita em novas bases que hoje é difícil imaginar.
Isso não é necessariamente ruim.
A política externa do lulismo uniu progressismo e conservadorismo, bebendo nas fontes de Jango e Geisel. Definiu o interesse nacional em termos da expansão do capitalismo brasileiro e da manifestação de uma nacionalidade emancipada. Usou uma linguagem de corte anticolonial e instrumentalizou coalizões ao Sul para barganhar com o Norte.
Nos temas cruciais, acomodou-se à Casa Branca, onde encontrou fonte inesperada de legitimação.
Em nenhum momento a política externa adaptou-se para servir aos novos atores engendrados pelo próprio lulismo: a nova classe média e o subproletariado emergente.
O desenvolvimento, diz o bordão oficial intocado desde a época da ditadura, seria função do fortalecimento do capitalismo industrial nacional e da autonomia da tecnocracia de Brasília diante dos gigantes industrializados. Hoje, o brado das ruas retumba contra essa tese, consciente que é dos horrores que podem dela resultar.
Qual será o impacto das últimas semanas na política externa ninguém sabe, mas sempre é possível fantasiar.
Imagine se Dilma colocasse a diplomacia a serviço da desmilitarização responsável da polícia brasileira. A truculência policial é prato cotidiano de boa parte da população brasileira, mas ganhou relevo no YouTube.
Em vez de atuar na retranca nos organismos internacionais relevantes, como faz hoje, o Brasil reorientaria sua postura com o fim explícito de acelerar a reforma policial.
Nada disso vai acontecer, claro. Como explicam nossos representantes nesses foros, "desestabilizaria o pacto federativo".
E, como o governo estima que poderá devolver o gênio à garrafa sem antes descascar esse abacaxi, fica por isso mesmo.
Restará a uma nova geração realinhar a política externa ao que pode surgir de novo na esteira das jornadas históricas de 17 e 18 de junho.
Talvez esse ajuste nos permita montar a próxima onda ascendente, no dia em que a maré começar a virar a nosso favor, com alguma sustentabilidade.
Da atual desordem, quiçá resulte algum progresso.
Texto de Matias Spektor, na Folha de São Paulo.
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