A fotografia geralmente chega como um anexo de e-mail ou da maneira antiga, em um envelope sem remetente.
E ela raramente exibe uma imagem bonita.
Muitas vezes, a imagem exibe um bem alimentado burocrata de meia-idade durante um encontro indecente com uma mulher que não é sua esposa. Ou mostra uma autoridade totalmente vestida, mas usando um relógio caro que seu salário de funcionário público nunca poderia comprar.
Em seguida, chegam as exigências: pague ou transforme-se na próxima sensação viral da internet.
Recentemente, várias autoridades chinesas se viram enredadas por esquemas de extorsão que têm se aproveitado do crescente descontentamento da população em relação a comportamentos condenáveis. Mas nem mesmo aqueles que resistiram e nunca cometeram nenhum tipo de delito estão imunes. Ajudados por softwares de computador, os chantagistas às vezes copiam e colam os rostos de suas vítimas em imagens comprometedoras que traduzem os excessos cometidos pelos poderosos.
O boom da extorsão na China ocorre num momento em que muitos membros do Partido Comunista são obrigados a se adequar, muito a contragosto, a uma campanha de austeridade promovida pelo governo e lançada pelo próprio presidente Xi Jinping, que suspendeu os caros banquetes financiados pelos contribuintes e os automóveis com motorista que antes eram considerados direito de nascença pelo funcionalismo público chinês.
De acordo com a Comissão Central de Inspeção Disciplinar, o principal departamento anticorrupção da China, entre o lançamento da iniciativa moralizante, no final de 2012, até o fim de abril passado, mais de duas mil autoridades foram investigadas e punidas por violar a campanha do governo.
Agora, além de terem que ficar atentos aos inspetores anticorrupção do governo, os funcionários públicos precisam lidar com chantagistas armados com armadilhas ardilosas, câmeras de vídeo ou pior: o Photoshop.
Aqui em Shuangfeng, um condado rural da província de Hunan, as autoridades prenderam dezenas de chantagistas, alguns dos quais têm utilizado transgressões reais dos funcionários públicos para exigir pagamentos. Outros simplesmente utilizaram a manipulação eletrônica para ampliar os delitos cometidos pelas autoridades.
"Ser uma autoridade do governo realmente é uma profissão de alto risco", disse o vice-chefe de um departamento local da província de Shaanxi, localizada na região central da China, que pediu para não ser identificado para evitar investigações.
A paranoia é um modo de vida, disse essa autoridade, e muitos colegas estão com medo de aparecer na internet cometendo algum delito --e que essa exposição negativa destrua suas carreiras.
As pessoas envolvidas nessa duvidosa indústria das fotografias forjadas, disse ele, incluem desde desavergonhados grupos de criminosos, que visam fazer dinheiro fácil, até indivíduos atrás de contratos comerciais vantajosos --embora as autoridades sedentas por poder e que visam obter ganhos políticos com a desgraça de outros camaradas também sejam "muito comuns".
"A coisa mais assustadora é que, se você for acusado de alguma coisa, o governo não pode dizer nada", disse o vice-chefe. "No final das contas, ninguém realmente se importa se a acusação é verdadeira ou falsa."
Tais temores têm sido agravados por uma série de casos de chantagem amplamente divulgados.
O jornal Zhengzhou Daily informou no mês passado que a polícia da província de Hebei desbaratou uma quadrilha de 80 jornalistas falsos que faturaram 1,1 milhão de renminbi, ou cerca de US$ 180 mil, durante os últimos cinco anos, após ameaçar publicar notícias negativas sobre autoridades do governo e empresas.
Em abril passado, três ex-funcionários da província de Hunan, localizada na região central da China, foram indiciados depois de serem apanhados instalando uma escuta e uma câmera em um filtro de água do escritório do chefe local do Partido Comunista, Hu Jiawu. Segundo os promotores do caso, os três ex-funcionários gravaram Hu "violando as normas disciplinares do partido" --o que geralmente é um eufemismo para o recebimento de propinas-- e, em seguida, ameaçaram denunciá-lo a menos que eles fossem promovidos. Em vez de atender as exigências, Hu denunciou os chantagistas. O chefe local do partido continua em seu cargo.
O governo de Shuangfeng passou à ofensiva para combater o flagelo da chantagem. Durante anos, ninguém parecia se importar com os fraudadores telefônicos que deram má fama à região. Isto é, até 2011, quando os vigaristas locais ampliaram suas investidas por meio da utilização do Photoshop e começaram a atacar funcionários públicos.
Em março passado, as autoridades locais começaram a espalhar cartazes e banners pelas ruas para estimular o combate às chantagens usando uma linguagem tradicionalmente empregada nas campanhas de planejamento familiar e nas exortações de veneração ao Partido Comunista.
"Toda a sociedade deve entrar em ação! Vamos iniciar uma maciça guerra do povo contra os crimes de chantagem que utilizam imagens obscenas modificadas com Photoshop", proclamavam os cartazes.
O rolo compressor da propaganda oficial foi lançado após a polícia de Shuangfeng ter anunciado que havia prendido 37 pessoas ligadas a 127 casos de extorsão que solicitavam um total de US$ 7,3 milhões de suas vítimas. Em uma reunião realizada para planejar a ofensiva, o secretário local do Partido Comunista prometeu "lutar até vencer ou morrer", de acordo com o site do governo.
Apesar de os slogans terem proporcionado vasto material para os piadistas de plantão da internet, os moradores locais reconhecem que a repressão foi bem sucedida. Ainda assim, muito poucas pessoas acreditam que a iniciativa erradicará completamente uma indústria que, segundo elas, pagou por muitas das casas de três andares recém-construídas que pontilham a paisagem por aqui.
"Os cartazes chamam a iniciativa de 'guerra do povo'. Mas por que as pessoas comuns ajudariam o governo?", perguntou um comerciante, que estima que quase a metade dos moradores do vilarejo esteja envolvida em fraudes e esquemas de extorsão. "Os funcionários do governo são conhecidos por serem obcecados com culinária gourmet, sexo e dinheiro", acrescentou ele. "Por isso, a indústria da chantagem é uma indústria muito lucrativa."
A extorsão contra as autoridades do governo da China chegou aos ouvidos do público em novembro do ano passado, quando um jornalista sensacionalista chinês postou na internet imagens obtidas a partir de vídeos que mostravam Lei Zhengfu, de 54 anos, secretário do Partido Comunista da cidade de Chongqing, localizada no sudoeste da China, tendo relações sexuais com uma moça de 18 anos.
Posteriormente, a moça disse aos investigadores que um incorporador imobiliário local havia pagado US$ 48 para que ela gravasse secretamente seu encontro íntimo com o secretário. Em seguida, o incorporador tentou usar as imagens para chantagear Lei e obrigá-lo a assinar contratos de construção com sua empresa.
O escândalo que se seguiu derrubou pelo menos dez autoridades, incluindo Lei, que aguarda julgamento por acusações de corrupção.
"A extorsão realizada com a utilização de fotos obscenas transformou-se no 'ponto fraco' das autoridades", dizia o título de um editorial oficial do partido, publicado na internet após a divulgação do caso de Chongqing.
De acordo com Zhu Ruifeng, o jornalista que publicou inicialmente as imagens, a onda de extorsões que assola as autoridades chinesas só foi tornada possível pela proliferação das mídias sociais, o que deu àqueles que combatem a corrupção e aos empresários que se aliaram a eles --de honestidade duvidosa-- o fórum ideal para expor as falhas morais dos funcionários públicos.
Zhu tem pouca simpatia por aqueles que são apanhados com a mão na massa. "Por que eles se tornariam alvo de extorsão se suas mãos estivessem limpas?", perguntou ele, acrescentando uma expressão idiomática chinesa para dar mais colorido a sua explicação. "Há uma razão para as moscas ficarem voando sobre ovos podres."
Ele e outras pessoas dizem que os possíveis alvos de chantagem mudaram suas atitudes durante a prática de atividades de lazer. Os burocratas começaram a reservar pessoalmente os quartos de hotel para seus encontros da hora do almoço e, antes de se despirem, revistam pessoalmente as bolsas de suas acompanhantes para verificar se não há nenhum dispositivo que permita gravações. "Agora, as autoridades estão cada vez mais cautelosas", diz ele.
Um funcionário de nível médio da prefeitura de Xi'an, terra dos famosos guerreiros de terracota chineses, confidenciou recentemente que sua cautela recém-adotada foi estimulada pelo aparecimento de uma foto incriminadora, que o mostrava usando um relógio de luxo que ele raramente exibia em público.
Aturdido pela consequente demanda por suborno, o funcionário público disse que abordou discretamente um colega de confiança sobre o ocorrido. O colega ficou chocado e disse que aquele era o seu primeiro contato com uma tentativa de chantagem. "Você acabou de receber uma carta contendo uma tentativa de extorsão?", perguntou o homem.
O funcionário pediu para permanecer anônimo para que a sua confissão não atraísse uma atenção indesejada.
Ele disse que ignorou a exigência do chantagista, mas passou a tomar mais cuidado para não ostentar sua riqueza e não expor as pessoas com quem se relaciona.
Agora, o relógio em questão está muito bem guardado. Mas até mesmo os parentes dele provaram do amargo fruto do autossacrifício. Recentemente, o funcionário público decidiu cancelar a festa de casamento de seu filho pois acredita que realizar uma cerimônia de luxo, com uma extensa lista de convidados, traria riscos excessivos. "Teria sido algo muito público", disse ele.
Em vez disso, ele deu ao casal dinheiro para que eles viajassem em lua de mel --para bem longe dos olhares indiscretos.
Reportagem de Dan Levin e Amy Qin para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradutor: Cláudia Gonçalves
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