Perdemos a noção do que juízes podem fazer em público. Esse mérito cabe, sobretudo, à conduta de ministros do STF nos últimos 20 anos.
Chutaram cânones universais da ética e do decoro judicial: podem manter relações com as partes e empresas interessadas; podem ser empresários e palestrantes no mercado de lobby de bastidor; podem militar por reformas, antecipar opiniões jurídicas e se xingar; podem dar festas a políticos. Alguns gabaritaram na descompostura. O que a Constituição, a lei e o bom senso proíbem, foram lá e fizeram.
Desse caminho não há volta no horizonte.
A gestão de Dias Toffoli somou à libertinagem a covardia. Hospedou general em seu gabinete e disse que golpe não foi golpe. Em contrapartida, recebeu dos generais ameaça de golpe. Prometeu resgatar a clássica separação de Poderes, mas nunca explicou o que significa; anunciou pacto republicano e foi avisado de que nada seria menos republicano. O STF deve controlar, não negociar nem prometer constitucionalidade.
Toffoli brigou com outros conceitos. Empolgou-se com a ideia de "diálogo" entre Poderes e do Judiciário como "editor" da sociedade, termos presentes na literatura. Praticou o contrário. Em nome do diálogo, passou a frequentar até festa da firma de cloroquineiros. Na condução da agenda, deixou a insígnia colaboracionista. Coerente com suas leituras, afirmou nunca ter visto ataque à democracia. Não se sabe se por malícia ou ignorância.
A dupla Toffux se dissolve e fica Luiz Fux. Lembre-se de quem estamos falando. Fux é expoente da magistocracia dinástica e trata o Judiciário como questão de família. Propiciou à filha de 35 anos cadeira vitalícia de desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ("É o sonho dela", "É tudo que posso deixar para ela", apelava a membros da OAB, como relatou Malu Gaspar em "Excelentíssima Fux", revista Piauí). O amor paterno não vê limite.
Representa também a magistocracia rentista. Em 2014, sua caneta monocrática concedeu auxílio-moradia ilegal aos juízes do país. Em 2018, revogou liminar porque governo garantiu aumento. Só deixou que auxílio fosse interrompido se aumento caísse na conta. Escreveu isso na decisão. Cada juiz enriqueceu ilicitamente algo perto de R$ 250 mil, quase R$ 5 bilhões dos cofres públicos. O caso ainda não saiu da gaveta para decisão final.
Deixou na gaveta também o caso dos "fatos funcionais" (penduricalhos que lei do RJ deu a juízes fluminenses). Em 2012, Ayres Britto votou pela inconstitucionalidade. Fux pediu vista. Toffoli colocou em pauta em dezembro de 2018 e tirou no dia seguinte. Já se vão dez anos e nada. Há tantos outros exemplos para discutir.
Fux anunciou que sua gestão terá quatro focos: proteção dos direitos fundamentais e do meio ambiente, combate à corrupção e a "pauta econômica". A ideia de que um tribunal escolha prioridades programáticas é alienígena à função judicial, mas deixemos isso para lá.
Listar focos genéricos é uma forma de desconversar. Indicar casos concretos testaria melhor a honestidade e firmeza do compromisso. Há casos que o país não pode mais esperar. Determinam vida ou morte, liberdade ou cárcere, proteção ou abandono, mais ou menos violência. Merecerão análise em colunas futuras.
O índice mais significativo de uma gestão no STF não é formado pelos casos que decide, mas pelos que prefere não decidir. Faço uma aposta sobre os cinco casos que Fux não decidirá nem que a República tussa. Façam as suas.
São eles: porte de drogas (2011); estado de coisas inconstitucional nas prisões (2015); interrupção da gravidez (2017); juiz das garantias (2019); decreto das armas (2019). Integram o conjunto de casos em que o STF mais contribui para o crescimento do PIBB —o Produto Interno da Brutalidade Brasileira. Não há pauta digna que deixe a tragédia humanitária para depois.
Se o STF decidir os cinco casos até 2022, deposito R$ 4.300 (valor do auxílio-moradia perdido), no último dia de seu mandato, no destino que Fux sugerir.
Como a aposta é impossível de perder, desejo mesmo que Fux não finja viver tempos normais e entenda a magnitude da corrosão constitucional. Se deixar para a política brasileira uma instituição judicial que ainda respire, terá superado todas as expectativas.
Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo.
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