Uma cidade é um corpo com suas marcas de nascimento, cicatrizes e tatuagens. A passagem do tempo abre sulcos na face urbana como se fossem rugas num rosto. A cidade é mapa, território, plano, tecido, construção, memória e esquecimento. Quem vive num lugar vai, aos poucos, produzindo caminhos próprios, atalhos, bifurcações, trilhas. Toda narrativa, nesse sentido, vem carregada de afetos. A cidade confunde-se com a biografia dos seus habitantes. Porto Alegre só pode ser descrita a partir dos seus pontos de referência naturais e culturais: os morros, o Guaíba, o Mercado Público, a Prefeitura, os estádios de futebol, a casa de Cultura Mário Quintana, o Correio do Povo, os prédios da Praça da Alfândega – MARGS, Memorial do Rio Grande do Sul –, o Chalé da Praça XV, a Capela Positivista da João Pessoa.
Não, não estou esquecendo o teatro São Pedro, o Piratini, a Catedral, o Solar dos Câmaras, a Usina do Gasômetro, a Redenção, o Parcão, a Orla, o Brique, o Largo dos Açorianos... É tanto lugar bonito, tanta história em pedra, tijolo, água e passado. Uma cidade é feita também dos seus estabelecimentos comerciais. Como falar do Mercado Público e não pensar no Gambrinus, no Naval, nas bancas disso e daquilo? Como pensar em restaurantes tradicionais e não citar o italiano Copacabana, a churrascaria Barranco, a Lancheria do Parque no Bom Fim, o Van Gogh, bar da Cidade Baixa, na esquina da República com a João Pessoas, ponto de encontro de notívagos, das saideiras e das sopas ao amanhecer? O Van Gogh está à venda, vítima da pandemia.
Uma cidade passa por cirurgias, perde pedaços, transforma-se, ressurge, às vezes, mais bela ou mais triste. Cidades envelhecem com a gente ou rejuvenescem enquanto nos tornamos idosos cobrindo-nos de nostalgia e de remorsos. Choramos o que se foi como se parte do nosso corpo fosse amputado a cada metamorfose. Tenho um amigo que se acostumou com o muro da Mauá e choraria a sua derrubada embora o ache horrendo. Cidades são feitas de realidade e de imaginário. Existem no concreto e em nossos olhos. Minha primeira lembrança de Porto Alegre, uma visita em 1979, é do alto do viaduto da Borges, o viaduto Otávio Rocha, de onde vislumbrei o Beira-Rio e me encantei com o Everest.
Sim, com o hotel Everest, imponente e movimentado naqueles tempos. Muitos anos depois eu instalaria franceses no Everest, entre os quais Edgar Morin e Michel Maffesoli, que antes de vir já pedia para ficar no hotel do centro num quarto de onde pudesse avistar O rio. As ruínas de uma cidade doem em nós. Ver abandonado o estádio Olímpico, onde fui jovem repórter de jornal cheio de sonhos e de deslumbramentos, corta até um coração vermelho como o meu. Saber que o Everest fechou as suas portas me deprime. É como se a cidade perdesse um ente querido. Ficamos mais vazios, menos ricos, mais desolados. Vida que segue, dirá o leitor. Os elefantes morrem. Ficam as lembranças até a extinção dos suportes dessas memórias urbanas. No Everest, fiz uma longa entrevista com Darcy Ribeiro. Com a sua irreverência, ele me disse: "O único teórico brasileiro sou eu. Os meus estudos sobre a antropologia das civilizações têm 146 edições. Há quem nada publicou e se acha muito importante". Está em meu livro "O pensamento do fim do século" (L&PM, 1993).
Crônica do Juremir Machado da Silva, em seu blog no Correio do Povo.
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