quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Somos condenados a sermos liderados por fanáticos incultos?

 Indro Montanelli (1909-2001) foi um grande jornalista italiano do século 20. Ele era liberal e, nos anos 1960, para mim (que era esquerdista), sua leitura era irritante, mas volto sempre com prazer à sua história da Itália, em oito volumes.

No caso, acabo de reler o primeiro volume sobre a Itália do fim do Império Romano até o ano 1000.

Sabemos que, no começo do século 4º, o imperador Constantino decretou que o cristianismo seria a religião do Estado. Montanelli comenta: “Se ele tivesse fé, ele não teria se comportado em sua vida privada do jeito que se comportou, matando sem piedade cristã não só seus inimigos, mas também seus familiares”.

E conclui: “Sua política religiosa foi, portanto, ditada unicamente pela ‘razão de Estado’”. Agora, “essa razão não deve ser procurada no fato de que a maioria de seus sujeitos já seriam cristãos. Ao contrário. A maioria esmagadora ainda era pagã, a relação entre pagãos e cristãos era, no mínimo, de cinco a um. Só que aquele um acreditava no seu deus e mostrara que para ele encararia até o martírio; enquanto isso, os cinco já fazia tempo que não acreditavam mais nos seus deuses”.

A escolha de Constantino pelos cristãos, segundo Montanelli, foi ditada por uma única consideração: para revitalizar o império, ele não podia contar com uma maioria cética e culta, ele precisava de uma minoria de fanáticos e, se possível, incultos, analfabetos funcionais ou, no mínimo, leitores de um livro só.

Os cristãos dos primeiros séculos eram, em grandíssima parte, justamente bandos de fanáticos incultos e dispostos a qualquer violência (releia-se o livro de Catherine Nixey, “A Chegada das Trevas: Como os Cristãos Destruíram o Mundo Clássico”, da editora Desassossego).

Com essa escolha, Constantino inventou um modelo político que continua fazendo o maior sucesso: a ideia de que a tomada, a consolidação e a expansão do poder dependem de um grupo que pode ser minoritário, mas que precisa ser animado por uma fé e afastado do “perigo” do ceticismo que a cultura sempre acarreta consigo.

A receita (fanáticos e incultos) vale, por exemplo, para os núcleos duros de todas as aventuras revolucionárias do século 20, dos bolcheviques aos fascistas e aos nazistas. E vale pelos contingentes evangélicos desde a eleição de Lula em 2002 até, de maneira mais saliente, à eleição de Bolsonaro em 2018.

Os evangélicos são hoje, mais ou menos, um em cada três brasileiros. Mas os fanáticos não devem passar de um em cada cinco ou seis.

Segundo Montanelli, com o apoio de pagãos cultos, diversos, céticos e ciosos de sua liberdade e, pasme, da dos outros, Constantino não conseguiria nada: pagãos não triunfariam numa luta contra os cristãos porque, ele escreve, “sobre o ceticismo não se constrói nada”.

Será que Montanelli tem razão? Será que os laicos, agnósticos e cultos serão sempre vencidos por uma minoria de fanáticos incultos? Será que os céticos não têm como resistir contra uma onda de certezas alimentadas por uma fé?

É isso mesmo? Somos condenados a sermos “liderados” por fanáticos incultos?

De fato, aos céticos e cultos, diria Montanelli, sempre faltaria entusiasmo (portanto, a disposição para lutar).

Os fanáticos lutam para impor a todos os caminhos pelos quais eles adoram se censurar e reprimir. Devem ter a estimulante impressão de estar trabalhando para realizar na marra a Cidade de Deus (ou o terceiro império dos homens puros).

Os cultos e céticos lutam para que cada um possa tocar a vida e gozar do jeito que lhe parece certo, sem ser julgado (apenas nos limites do Código Penal). É menos estimulante do que agitar os estandartes de Deus, família e tradição —sobretudo para o aplauso de quem nunca parou para pensar o que eles podem significar.

Para mim, a liberdade quase ilimitada de gozar e tocar a vida é um prazer pelo qual vale a pena lutar, mais do que por qualquer outro.

Mas talvez essa liberdade moderna já seja uma espécie em vias de extinção. Talvez os fanáticos e incultos sejam fadados a prevalecer.

De qualquer forma, não sei mudar. Só posso me associar a Antonio Scurati, autor do imperdível “M, O Filho do Século” (ed. Intrínseca), que, numa entrevista, explicou assim a relevância que tem para ele a defesa da civilização que inventamos: “Somos os últimos a ter sido educados intelectual e civicamente nos ideais do antifascismo e no mito da resistência contra o nazifascismo”.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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