Propuseram certa vez a Antonio Candido que escrevesse um manifesto para defender a livre repetição de palavras. Quem redige nessa maldita língua sabe: é considerado feio usar o mesmo vocábulo numa frase, ou mesmo em duas frases seguidas.
Para evitar a repetição de “palavra” e “escreve”, pois, se apelou para “vocábulo” e “redige” na frase acima —e, nesta aqui, se pôs “apelou” para evitar “escreveu”: pronto, se escreveu “escrever” quatro vezes na mesma frase, duas delas em seguida. Que horror.
Quando foi a Yale fazer pós-graduação, Roberto Schwarz teve de escrever ensaios em inglês. No primeiro deles, recorreu a um dicionário e salpicou seu texto com sinônimos. Seguidor da norma culta, queria evitar a perniciosa repetição de palavras.
Ao lhe devolver o ensaio, o professor lhe disse que estava ótimo. Mas acrescentou: “Vejo que o senhor usa ‘elegant variations’, que aqui abandonamos no século 17”. Pois é. Também na França jornalistas e escritores repetem palavras adoidado.
Vide Chateaubriand. Não o do filé, o outro. Lá, a de um texto, sua beleza, não está em evitar a reprise de palavras. Aqui, não. Ter um vocabulário vasto é marca de distinção: “que texto!”, se exclama a propósito de qualquer bobagem rebuscada.
Na imprensa, a situação vem melhorando. Ninguém usa “edil” para evitar a repetição de “vereador”, como era de praxe há poucas décadas; ou “petiz” no lugar de “criança”. Mas nas crônicas culinárias há quem insista em escrever “redonda” em vez da insubstituível —e simplória— “pizza”.
Ao ouvir a proposta do manifesto antirrepetitivo, Antonio Candido sorriu: “Ah, a sinonímia opulenta!”. Pensava, talvez, em Ruy Barbosa, que, entre tantos danos feitos ao idioma, advogava a untuosidade lexical, delirava em ver triunfar as nulidades. E tome “Oração aos Moços” e bacharelices quetais, todas pesadamente pré-modernas.
A Águia de Haia —note-se que não se repetiu o nome do filólogo enfezado— empilhou 38 sinônimos (barregã, hetaira, michela, quenga, zambeira etc.) para não conspurcar seu textículo com “prostituta”—ainda que as messalinas, pelo jeito, não lhe saíssem da cabeça. Freud explica?
Polido, como era do seu feitio, Antonio Candido agradeceu, mas não quis fazer o contramanifesto, apesar de simpático à ideia. Argumentou que não era escritor, não tinha autoridade para tanto. E sugeriu um nome para escrevê-lo: Luis Fernando Verissimo.
Peraí, Veríssimo? É um bom escritor, é claro, mas de um gênero menor, a crônica, que ele desovava e desova com abundância algo mecânica nos jornais. É mais um profissa da escrita que um artista raro,
bafejado por musas sublimes.
Para não variar, Antonio Cândido tinha razão. O texto ágil e a popularidade de Verissimo eram, são, suficientes para se insurgir contra variações elegantes e sinonímia opulenta. Quanto a ser cronista, Alencar, Machado, Bilac, Drummond e Mário de Andrade também o foram.
O tal manifesto não saiu. Ele faria boa figura no recém-lançado “Verissimo Antológico – Meio século de Crônicas, ou Coisa Parecida” (Objetiva, 709 págs.). A ênfase deve ser posta em “qualquer coisa”: a editora Daniela Duarte excluiu as crônicas que comentavam as notícias do dia. Seria preciso, afirma ela, “explicar a piada” em notas de rodapé.
Para Manuel Bandeira, esse embaraço é próprio da crônica. O poeta disse que, num livro, a crônica é um pássaro morto. Seu lugar é o céu da imprensa, onde voa livre e, vista de relance, maravilha por um instante e logo é esquecida. Num livro, apodrece, cheira mal.
“Verissimo Antológico”, então, reproduz um sem-número de relatos ficcionais. São passeiozinhos meio borgianos, todos sem gravidade, descompromissados, agradáveis e inócuos. Neles sobressai a graça da crônica, ainda que ele não escreva propriamente sobre o dia a dia.
Há no livro, porém, um pássaro vivíssimo, o artigo “Bird”, apelido de Charlie Parker, o músico de jazz. Ele não era uma ave livre, e sim um “yard bird”, um pássaro de quintal —gíria para os frequentadores de prisões. Viciado, Parker passou parte da vida preso em cadeias e hospitais.
Verissimo, que também é músico de jazz, pega o leitor pela mão e explica tintim por tintim a arte de Charlie Parker. Claramente, ela o emociona, lhe diz coisas que estão muito além das banalidades do cotidiano.
Suas explicações são técnicas e abrangentes, chegando a compará-lo a Bach, Flaubert e William Blake. O artigo é prodigioso. E não repete uma única palavra.
Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo.
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