Eu só queria comprar um presente para a filha de uma amiga. Estava decidida a não entrar naquele túnel do terror cor-de-rosa, também conhecido como sessão de brinquedos de meninas, com panelinhas, bonecas e acessórios para bonecas, incluindo bonecas para as bonecas e bonecas para as bonecas das bonecas, e assim por diante.
Fui parar em uma loja escondidinha, que só vendia brinquedos adaptados aos tempos de hoje. A vendedora garantiu que eu estava no lugar certo e me apresentou a uma linha inovadora que prepara as meninas para o mundo, sempre de forma lúdica, por uma perspectiva mais ampla e realista do que os brinquedos tradicionais.
Um dos produtos mais vendidos, o Kit Relacionamento Abusivinho, vem com um celular de mentira para a menina receber ameaças do ex. São mensagens como: “Ninguém nunca vai te querer!”, “Para de postar foto assim, tá parecendo uma puta!”, “Desculpa, você me deixa nervoso, eu vou mudar, prometo...”.
Assim, ela aprende brincando a identificar um relacionamento tóxico no futuro e a se defender com a ajuda de seus amiguinhos, o B. O. Zinho, um Boletim de Ocorrência muito trapalhão, e a Ordenzinha de Restrição. Me pareceu útil, mas achei o conteúdo pesado para uma criança de cinco anos.
Em seguida, pude conferir em mãos uma edição limitada do boneco Meu Primeiro Chefinho, que vem com um gravador embutido para repetir o que as meninas falam como se a ideia fosse dele, e ainda possui os modos Mansplaining e Manterrupting.
Apesar da tecnologia avançada, ele só não tem capacidade para memorizar o nome de sua pequena funcionária. Confesso que até bateu uma nostalgia, meu primeiro chefe era igualzinho, mas o brinquedo era caro demais.
As opções eram bem diversas. A Masmorrinha da Depilação já vem com uma foliculite e uma queimadura de segundo grau de brinde. No Jogo da Vida - Patriarcado Edition, as meninas já largam na desvantagem. A pedida para as adolescentes é o RPG Damares Fantasy, cujo objetivo é conseguir fazer um aborto seguro em um cenário medieval inspirado no governo Bolsonaro.
E, por fim, a Barbie Meu Corpo Minhas Regrinhas, que, apesar de saber falar “não” em 35 idiomas e 56 entonações diferentes, acompanha um minitaser que funciona de verdade, só para garantir.
A panelinha cor-de-rosa já não parecia uma ideia tão ruim assim.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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