quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Por que quarta-feira?

 Criança, em Portugal, causavam-me estranheza os nomes dos dias da semana. Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira… Que feiras são essas? Por que "terça" e não "terceira"? E por que não há primeira-feira? Dona Isaura, minha professora e mãe, não sabia as respostas, mas ponderava feliz que “é melhor do que nas outras línguas que dão nomes de deuses pagãos”.

Em inglês, alemão e demais idiomas germânicos, os dias da semana levam nomes de divindades: Sol, Lua, Tiw, Woden (Odin), Thor, Frigga e Saturno. Nas línguas latinas, como o francês, o espanhol e várias outras, "domingo" tem origem cristã ("dies dominicus", o dia do senhor), e "sábado" provém da tradição judaica ("Shabbath"). Mas em quase todas essas, os demais dias continuam com nomes de deuses: Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter e Vênus. A única exceção é o português, e essa particularidade é atribuída a um indivíduo notável, que viveu no século 6: São Martinho de Dume.

À época, após a queda do império romano, a Península Ibérica era ocupada por dois grupos de povos germânicos: os suevos, na região noroeste, atualmente ocupada pela Galiza e norte de Portugal, e os visigodos, no restante do território. A capital sueva era a velha Bracara Augusta dos romanos, hoje a cidade de Braga.

Nascido na atual Hungria, Martinho estudou na Terra Santa, Roma e Paris, de onde se deslocou para o reino suevo. Lá, fundou diversos conventos, o primeiro deles no povoado de Dume, próximo a Braga. Evidência de sua extraordinária influência, em 556 esse convento tornou-se por si só uma diocese, tendo Martinho como bispo, caso único na história da Igreja. Três anos depois, ele acumulou Dume com a diocese da capital Braga.

Seu maior êxito foi a conversão do reino do arianismo ao catolicismo, o que lhe valeu a denominação de "apóstolo dos suevos". Certo de que era indigno de um bom cristão invocar nomes de deuses pagãos, impôs a terminologia eclesiástica para os dias da semana: "dies dominicus", "secunda feria", "tertia feria", "quarta feria", "quinta feria", "sexta feria" e "sabath". Aqui "feria" significa "dia livre" (tal como nas nossas férias) —e não feira. Também fica explicado o "terça", derivado do latim "tertia".

É um tributo à notável força de Martinho que sua vontade tenha prevalecido até os nossos dias, de tal modo que não restam praticamente vestígios dos nomes dos dias da semana em português antigo ("domingo", "lues", "martes", "mércores", "joves", "vernes", "sábado"). Já a língua galega, que na época de Martinho estava unida à portuguesa e, portanto, adotou os novos nomes, ao longo dos séculos acabaria voltando às velhas denominações.

Martinho tentou ir mais longe e mudar também os nomes dos planetas, mas nisso não teve êxito. Morreu em 20 de março de 579, deixando diversos escritos religiosos.


Texto de Marcelo Viana, na Folha de São Paulo

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