O tempo começa a esquentar de novo em São Paulo, e espero para estes dias a invasão vesperal daqueles cupinzinhos voadores, de quem não tenho muita raiva. Sabe-se que são um perigo para os móveis, as árvores, as paredes, o que vier pela frente.
Mas são tão frágeis! Morrem tão depressa! Convenci-me de que é preciso usar o inseticida. Verdadeira covardia. Eles perdem as asas sozinhos; não se debatem, não fogem, não reclamam.
Um vaqueiro que conheci se recusava a comer carne de carneiro. “Já viu matarem algum?” Respondi que não. “Ele aceita, não faz nada.”
Poderíamos pensar que, então, tanto melhor —o bicho não está fazendo tanta questão de viver. Mas o raciocínio, é claro, é o oposto. O touro, o atum, o javali, pelo menos estão no jogo; por desigual que seja a luta, o carnívoro teoricamente teve algum mérito na vitória.
Isso não vale, evidentemente, para quem compra carne no supermercado; tento acompanhar o raciocínio de quem vive no campo. O certo seria, em todo caso, virarmos todos vegetarianos e encerrar para sempre essa discussão moral.
Ou então comer insetos —a tendência cresce, ainda que lentamente. Dada a minha idade, relativamente madura, acredito que não vou ver o tempo em que gafanhotos e formigas venham a constituir parte
da dieta ocidental. Irão devorar-me antes que eu os coma.
Volto então às pobres aleluias, siriris, cupins ou seja lá que nome tenham. Numa cidade em que as estações do ano se confundem, esses insetos merecem elogio pela regularidade.
Lembro uma noitinha de calor, nos tempos em que a Folha nem ar-condicionado tinha. Era a hora em que as coisas começavam a apertar para quem estava escrevendo um texto. Aí pelas 18h30 ou 19h, as notícias se precipitam, podem contradizer tudo o que se dizia antes, alguma bomba real ou econômica explode do nada, o tempo encurta.
De repente, uma pausa, um silêncio sem motivo; as coisas pararam de acontecer por um minuto. E, pela janela, entraram as aleluias, sem barulho. Pareciam aproveitar a brecha de silêncio. O fato —estávamos entre jornalistas— merecia registro. “O verão está chegando”, disse alguém.
Chegava, e os bichinhos já iam morrendo, deixando sobre as mesas e no chão suas asas transparentes, mas levemente ruivas de calor e pó. No fundo, não sei é preciso matar esses insetos. Desaparecem sozinhos, junto com o dia em que surgiram.
Vai ficando estranha aquela expressão —matar o tempo. Acho que, antigamente, havia um bom número de horas vazias. Esperando que Dona Benta entrasse na sala para contar suas histórias,
Pedrinho olhava bestamente para o relógio, e sem nada o que fazer, ficou —na frase tão feliz de Monteiro Lobato— “arrepiando xizes no veludo da almofada”.
Hoje, qualquer minuto de espera é tomado pelo celular e, entre joguinhos, selfies e WhatsApps para responder, esvai-se a diferença entre o útil e o inútil, o necessário e o supérfluo.
O tempo já não passa, já não corre e já não para. Pelo menos, é isso o que sinto desde que começou a pandemia.
Fico tanto dentro de casa que, na verdade, o próprio tempo parece ter virado espaço. Qual o último filme que vi no cinema antes da pandemia? Não me lembro; também esqueci a minha última refeição num restaurante.
Faço força para voltar à minha viagem de férias em julho de 2019. Faz um século, e foi recentíssima: Joe Biden já estava na corrida presidencial americana.
Não é que “faz tempo” desde aquelas férias. Não ficaram simplesmente “no passado”: ficaram em outra dimensão.
Já agora, na pandemia, os dias, as semanas e os meses se tornam praticamente simultâneos. Entre hoje, ontem e o mês passado não noto nenhuma diferença.
As notícias continuam, os artigos se escrevem, o café se coa, a pasta de dente acaba, o corpo muda, o cabelo cresce: os fatos, enfim, não deixaram de existir.
Tornaram-se, entretanto, iguais, pontuados, estáticos, mal se movendo entre o quarto, a cozinha e o banheiro.
Acumulam-se nesse interminável parêntese que se abriu em fevereiro, março ou abril, já não sei mais.
Olho para trás, para todos esses meses, semanas e dias desfeitos na inatividade e no silêncio.
Amontoaram-se no chão, como os cupinzinhos mortos. Paro por aqui. Tempo de varrer o apartamento.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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