quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Lei de Segurança Nacional e a semidemocracia brasileira

 A Lei de Segurança Nacional (LSN) é a formalização jurídica dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Doutrina esta que se desenvolveu no âmbito da Guerra Fria e do regime militar (1964-1985). A última versão da LSN é de 14 de dezembro de 1983 (lei nº 7.170), aprovada nos estertores do governo do general Figueiredo. A ótica dessa doutrina era dirigida para o combate do inimigo interno. Com a transição para a democracia, tal lei foi abolida por outros países do Cone Sul —ao contrário do Brasil. E, para piorar, esse "entulho autoritário" vem sendo cada vez mais utilizado.

A LSN, durante o regime autoritário, funcionou como uma espécie de apêndice do Código Penal Militar (CPM) no sentido de que os que a violassem seriam julgados pelo Superior Tribunal Militar. A Constituição de 1988 apresentou a boa novidade de considerar crimes militares somente aqueles que estivessem contemplados pelo CPM. Isso foi um avanço, pois os crimes contra a segurança pública passaram a ser apreciados pela jurisdição ordinária em vez da jurisdição militar.

Na prática, todavia, reina a ambiguidade. O artigo 109, inciso V, da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre crimes políticos. Diante disso, a LSN termina cobrindo os crimes políticos. Em maio de 1993, por exemplo, quatro separatistas foram indiciados pela LSN, sob a alegação de pregarem a criação de um novo país no Sul do Brasil, e deveriam ser julgados por corte militar. Em democracias sólidas, civis não são julgados por tribunais militares.

Por conta de indiciamento de membros do MST na LSN, durante o governo Fernando Henrique Cardoso foram apresentadas no Congresso Nacional quatro propostas de revogação dessa lei. Duas no Senado, por José Eduardo Dutra e Roberto Freire, e duas na Câmara, por José Genoino e Milton Temer. Em seguida, FHC nomeou uma comissão especial encarregada de transformar a LSN em Lei de Defesa do Estado Democrático. O projeto foi concluído, em dezembro de 2000, mas não se transformou em lei.

O fato é que o Estado brasileiro continuou sem possuir uma lei que regule democraticamente o uso dos instrumentos de defesa da ordem. Posteriormente, o então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, enviou ao Palácio do Planalto anteprojeto de revogação da LSN. Esse impulso renovador foi arrefecido com a saída do mesmo do governo. Enquanto FHC decidia o que fazer com o anteprojeto, a Comissão de Constituição e Justiça, em 20 de novembro de 2002, aprovou por unanimidade projeto dos deputados José Genoino e Milton Temer que revogava a LSN. O projeto, todavia, nunca foi levado ao plenário.

Hoje há um retrocesso no uso da LSN. O que outrora era pontual passou a ser corriqueiro. A começar pelo Supremo Tribunal Federal, que prendeu, com base na LSN, uma ativista e outros cinco membros do grupo "300". Em seguida, o STF usou desse mesmo diploma legal para apurar protestos nos quais os manifestantes pediram a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e desta corte.

O Ministério Público Federal contribuiu para esse retrocesso, pois o esfaqueador de Jair Bolsonaro foi enquadrado na LSN. Já o ministro da Justiça, André Mendonça, solicitou que dois jornalistas, por críticas ao presidente da República, sejam investigados tendo por base a LSN. Afora a ameaça do general da ativa Eduardo Pazuello, de enquadrar na LSN quem vazar informações discutidas no âmbito interno do Ministério da Saúde. Supõe-se que o ministro interino fez uma confusão entre o que é assunto de Estado e o que é questão de segurança nacional.

A situação vigente atesta que várias instituições não estão funcionando a contento em nossa semidemocracia. Por isso mesmo, os conflitos continuam a serem dirimidos, com cada vez mais frequência, por uma lei que é resquício do regime militar. Quando este entulho autoritário será revogado?


Texto de Jorge Zaverucha, publicado na Folha de São Paulo

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