“Boa tarde. A senhora tem um minuto?”
“Eu tô com o pagamento em dia, pelo amor de Deus. Guardo todos os recibos, pode conferir. Taxa de moradia, água, gás, gatonet.”
“Eu não vim aqui pra cobrar nada disso, pode ficar tranquila.”
“Nossa, que susto o senhor me deu.”
“É por isso mesmo que eu queria conversar com a senhora. A nossa comunidade já tá cansada de sentir medo, é ou não é?”
“É?”
“O morador não quer mais ser achacado dentro da própria casa. Se continuar assim, até o ar vai ser cobrado. Imagina: respirou, pagou. Pode uma coisa dessa?”
“Eu não sei se entendi o motivo da visita.”
“A gente tá arrecadando um valor simbólico pra proteger a comunidade.”
“Mas eu já pago pela segurança.”
“É, mas o carnê do crime só garante proteção contra bandido. Eu tô falando desse mal que tá arrasando com a nossa região. Essa maldita dessa milícia.”
“Agora eu fiquei confusa.”
“Não sei se a senhora tá acompanhando as notícias, mas miliciano é uma praga. Eles vão se infiltrando no poder público, pra combater é uma dor de cabeça, mas eu não vou deixar esse pessoal fazer o que quer aqui no bairro não.”
“O senhor tá falando de quem?”
“Desse bando de policial exonerado que fica extorquindo o morador. Só um minuto, preciso atender essa ligação. Fala, Braga, volta lá hoje e avisa que se ele não pagar vira ração de porco, forte abraço. Perdão, senhora. Onde é que eu tava? Ah, sim, no fundo antimilícia. A contribuição pode ser semanal, ou a senhora paga de uma vez a mensalidade, que sai até mais em conta.”
“Mais uma taxa? Desculpa a sinceridade, mas achei que o senhor fazia parte da... milícia.”
“Assim a senhora fere os meus sentimentos. Miliciano é um nome muito forte. A gente tem que separar o pessoal do profissional. Não é porque eu sou um agente do Estado que trabalha no ramo da segurança privada, da construção civil, da distribuição de gás e do tráfico de armas e drogas, que a senhora pode me reduzir a isso.”
“Não era minha intenção ofender o senhor.”
“A senhora vai colaborar?”
“Eu tenho escolha?”
“Não.”
“Então vou colaborar, sim, claro.”
“Isso que eu chamo de espírito coletivo. Deus abençoe.”
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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