quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Obras de Sérgio Medeiros e Rodrigo Garcia Lopes ensinam a contemplação

 Olhar o mundo pela janela sempre foi ocupação de poetas, mas a Covid intensifica a coisa.

Vamos todos ficando mais contemplativos, distantes e curiosos no que diz respeito à vida alheia.

Mais do que isso, há a estranheza diante dos novos hábitos, o surrealismo das ruas desertas, o espanto diante da morte coletiva. Assunto não falta.

Em “O Enigma das Ondas”, livro recém-lançado pela Iluminuras, o poeta Rodrigo Garcia Lopes vai fundo em seu mergulho pelo tempos atuais.

“É a face coberta por um pedaço de pano”, diz ele, “é o humano reaprendendo a ser humano.// É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,/ é o translúcido azul do céu de Pequim.// É o papa rezando na São Pedro deserta,/ são as águas transparentes dos canais de Veneza.// Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,/ presos no labirinto com Minotauro e Teseu.”

A sucessão de dísticos rimados, que se estende longamente, produz o efeito de quem folheia as páginas de um mesmo jornal, num dia que não acaba. As notícias renovam suas surpresas, mas a situação não muda.

É também esse o espírito de um poema sobre o filme “O Feitiço do Tempo”, em que Bill Murray acordava sempre no mesmo dia do ano.

Com grande perícia, Rodrigo Garcia Lopes emprega a forma da sextina —em que a palavra final de cada verso tem de ser repetida ao longo de seis estrofes diferentes.

Desse modo, numa estrofe o personagem, Phil, percebe que “Às seis tocou o rádio-relógio que ele jogara fora:/ “Mas que inferno este eterno presente!”/ No quarto, tudo no mesmo lugar de ontem,/ quando ao som de Sonny & Cher se levantou às seis/ e diante do espelho perguntou: ‘Será diferente hoje?’/ —Nasci de mim quando acordei. Tento outra vez?”.

Em outra estrofe, as últimas palavras se repetem: “‘A marmota viu a sombra antes de ontem,/ ontem, hoje também. Vou dizer mais uma vez,/ Sou imortal! Sou Deus!’ Foi quando seis/ caipiras jogaram o homem do tempo pra fora/ do café. Acreditava agora estar num mágico presente./ ‘Algo me diz que nada será como hoje’”.

A sensação de aprisionamento é vencida, por vezes, num gesto raivoso. Em “Últimas Notícias”, Garcia Lopes coleciona clichês jornalísticos no começo de cada verso, subvertendo-os num desbordamento poético: “o mercado assimilou mal a notícia do vazamento da neblina nas montanhas, o sonho dos homens, essa maldita vontade de durar”.

Outras vezes, a contemplação e o assombro vencem o sentimento de sufoco, e o tempo, que estava em círculo vicioso, parece conhecer uma ruptura: “Um clarão incrível! revela/ o vulto recortado da costa/ mais ao sul onde o escuro/ se rebela num flash/ de uma câmera gigantesca/ minutos antes do ataque/ da tempestade: montanhas”.

É como se só pudéssemos ver o que já acabou de existir.

Não sei se a quarentena inspirou diretamente os textos de outro poeta, Sérgio Medeiros. Mas, em “O Barraco das Letras e dos Hieróglifos” (disponível gratuitamente em medeirossergio.blogspot.com), o jogo entre prisão e liberdade, morte e sobrevivência, parece responder às sensações da pandemia.

Como nos outros livros de Medeiros, há aqui uma capacidade sobrenatural de anotar, como se visto de longe, ou mais precisamente de uma janela de apartamento, o evento minúsculo, impregnado de vida.

“De costas no chão o besouro parece meio adormecido…”, escreve Medeiros; “então as formigas se põem a embalá-lo…”. Nesses poemas, sempre de duas linhas, topamos com tudo quilo que poderia voar, mas não voa, e o que não pode, mas voa mesmo assim.

“Braços de motoristas pendem/ sobre a rua como asas inúteis”, diz um poema, enquanto em outro “as nuvenzinhas são como dois filhotes de cadela:/ se cheiram e se mordem e depois rolam abraçadas”. Enquanto isso, “A pista está vazia mas lá na cabeceira envolta numa baforada/ de calor uma cauda opaca gira trêmula”.

E é ainda de confinamento que se trata, quando “no quarto frio do menino o cata-vento verde/ gira sem parar no pote de lápis sobre a mesa”, ou “na única sacada acesa da ruazinha escura/ uma moça dá murros num saco de pancada”. Ou quando “escorrem fios brancos das/ orelhas dos adolescentes”.

Em outra visão do aeroporto, Sérgio Medeiros nota que “a sombra rápida passa pela pista silenciosamente/ sem o avião grande que só toca o solo depois”.

Há muita arte em deixar esse “depois” como última palavra do verso. Como no “Feitiço do Tempo”, não há quem não esteja esperando, hoje, esse “depois” que nunca chega.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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