quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Em algum momento devo ter feito algo certo, provavelmente sem querer

 Não sei se algum leitor da minha geração também passou por isto: tinha uma coleção chamada “Crianças Famosas” sobre a infância dos compositores —supostamente pra incentivar nas crianças o gosto pela música clássica, supostamente porque isso relaxava a criançada.

Ali aprendi que Mozart escreveu um minueto aos quatro anos de idade e Chopin, aos sete, já tinha composto sei lá quantas polonaises. Só conseguia pensar: “Cacete. Eu tenho oito anos e ainda não compus porra nenhuma”. A coleção não somente falhou em despertar o gosto pela música clássica como destruiu meu gosto pela vida. Só conseguiu suscitar o gosto amargo do fracasso.

Tinha uns 12 anos de idade quando percebi que já não tinha sido uma criança prodígio, 18 quando me dei conta de que tampouco tinha sido um adolescente prodígio e foi só aos 30 que percebi que só me restava tentar ser um velho prodígio. Foi por isso, acho, que comecei a escrever e atuar: pra fantasiar com realidades menos frustrantes que esta.

O tempo que perdi me imaginando na ponta direita do Fluminense! Na guitarra do Foo Fighters! No elenco do “Chaves” brasileiro! “O diabo desta vida”, dizia o Fernando Sabino, “é que entre cem caminhos temos que escolher apenas um e viver na nostalgia dos outros 99”.

Um belo dia –pasme!– a angústia passou. Não porque tenha deixado de fracassar, mas porque, desde que a minha filha nasceu, já não me interessa nenhum dos outros 99 caminhos —porque nenhum deles acaba nela.

Calma, leitor cínico! Não estou dizendo que a paternidade seja a panaceia pra todos os sofrimentos. Continuo sofrendo, claro, mas a diferença —enorme— é que não trocaria meu sofrimento pelo de ninguém. Juro pra você que se me apresentassem uma máquina do tempo eu tacava fogo. A simples hipótese de uma alteração no passado que despertasse uma realidade paralela me apavora. Não trocaria meus fracassos pelo sucesso de ninguém.

Tenho 34 anos e não compus sinfonias nem minuetos. Em vez disso, comprei brigas bobas, fiz filmes que ninguém viu ou que todo o mundo se ofendeu, perdi amigos, processos, cabelo. Ainda assim, alguma coisa eu devo ter feito de certo nesta vida.

“Você está aqui, na minha frente, me amando”, diz a Fraulein Maria ao Capitão Von Trapp, “então, em algum momento da minha infância ou juventude eu devo ter feito alguma coisa boa”. Ainda não descobri o que foi.

Só pode ter sido sem querer.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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