sábado, 12 de setembro de 2020

Caetano, meu Deus do céu!

 Assisti ao excelente documentário “Narciso em Férias”, dos diretores Renato Terra e Ricardo Calil, e fiquei pensando em todas as coisas que eu não disse ao Caetano Veloso no dia em que tive a honra de conhecê-lo.

Caetano, meu Deus do céu, era isso que eu queria ter dito: “Caetano, meu Deus do céu!!!!”. Quando cheguei naquele jantar e pude apertar sua mão, eu queria ter chorado, dado vexame, pedido foto. Mas eu só me sentei toda comportadinha ao seu lado e falei “foi um belo show”. Quem é essa pessoa que eu me tornei?

Paula me disse que conhecia alguém que estava lendo meu livro. Moreno sabia mais ou menos quem eu era. Então achei que meu deslumbramento e nervosismo pertenciam a uma mulher do passado. Não me permiti enfileirar 187 bolinhas feitas de pedacinhos de guardanapo para tentar dar conta do momento. Endireitei a postura e, blasé, tentei caber na pior das mentiras: esse é só mais um dia normal.

Você é o meu maior ídolo. Você é o cara mais foda que eu conheço. Eu te usei a minha adolescência inteira para chorar de quase morrer e há 20 anos é você quem me tira de todas as minhas depressões. Minha filha só não se chama Caetana porque eu já tinha combinado com a Santa Rita uma homenagem. Você é o maior letrista já nascido nesse país, a voz masculina mais bonita que eu já ouvi e meu intelectual preferido. Não posso ver o sol nas bancas de revistas sem pensar quem, afinal, lê tantas notícias. A única beleza, penso sempre, é a beleza esperta. Toda semana falo na minha terapia a frase “mexe qualquer coisa dentro doida” e sempre que posso explico aqui em casa que “onde queres família sou maluca”.

Aos 30 anos eu precisava ir para Londres, a trabalho, mas estava inteira paralisada pelas crises de pânico. Não era capaz de ir até uma padaria sem passar mal. Mas seu disco “Transa” foi comigo. It’s a long way. Sair do peito. Sair da infância. Sair da adolescência. Sair da zona leste. Sair da casa dos meus pais. Sair do Brasil. Sua música movimenta meu corpo ao encontro de muitas coragens e forças.

A primeira vez que eu me apaixonei pra valer foi por um estudante do Largo São Francisco que morava na Avenida São João. Passei os quatro anos da faculdade cantarolando o verso “alguma coisa acontece no meu coração” ininterruptamente. Era no banho, no metrô, no meio das aulas. Foi nessa mesma época que comecei, com meu anel de lua e estrela, a rabiscar os primeiros textos. Ao ouvir que Carnaval não era mais pra mim, minha amiga Giovana praticamente me obrigou a desfilar no centro com o bloco “Tarado Ni Você”. Na hora em que tocou “A Luz de Tieta” e eu era esse alguém entre muitos tão livres e felizes e seminus e pintados e acenando para tantos outros nas janelas, eu desabei em lágrimas como se estivesse guardando algo muito pesado no meu corpo há décadas. “Quem não finge quem não mente. Quem mais goza e pena. É que serve de farol”. Você me salva mil vezes por ano.

Durante os 14 meses em que amamentei Ritinha, ouvi sem parar o disco “Ofertório” e a primeira vez em que sai à noite, desde que me tornei mãe, foi para te ver fazendo o show com seus filhos. Quis cantar bem alto para provar que sabia todas as letras (e que apesar da devoção a um bebê eu ainda era uma mulher capaz de adorar outras grandiosidades).

Eu só queria te encontrar de novo e poder ter um surto e poder ser muito caipira e muito idiota. No dia da sua live-show, alguém postou no Twitter “é por isso que eu não saio do Brasil”. Fiquei com essa frase na cabeça. Sim, é por isso que eu ainda tenho orgulho desse país. Não aquele nacionalista babaca da escuridão. Mas de alguém tremendo porque está ao lado do maior ídolo, um artista que brilha mais do que milhões de sóis.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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