terça-feira, 22 de setembro de 2020

Xavier de Maistre, um confinado no século 18

 Um livro sobre isolamento. Será que você ainda tem paciência para esse tema? A Editora 34 acredita que sim e, por isso, resolveu publicar a obra, lançada originalmente em 1795.

Xavier de Maistre, nobre tanto de família quanto de espírito —e ele deixa as duas coisas bem claras no texto, numa pira egoica algo ingênua e bastante elucidativa do século 18—, escreveu esta obra delicada e extremamente culta durante o período de 42 dias (mesmo número de capítulos do livro) em que esteve preso em um quarto na fortaleza de Turim —cidade do meu coração, foi minha primeira viagem para a Europa, e poucas vezes me senti tão livre.

O escritor, poeta, artista plástico por hobby e, antes de mais nada, militar havia se metido em um duelo com outro oficial por causa de uma mulher, e seu castigo acabou sendo um dos maiores sonhos das mães escritoras que eu conheço: ficar longe de tudo e de todos por mais de um mês com serviço de quarto, belos quadros, muitos livros, uma mesa e material para escrever. E digo mais: sorte dele que ainda não existiam internet e Netflix.

Com ares de desbravador, De Maistre nos fala sobre os 36 passos de um ponto a outro do seu quarto: "Hei de percorrer meu quarto em comprimento, em largura ou ainda em diagonal". Diz que o sol aquece bem cedo sua cama cor-de-rosa e nos ensina como atingir um estado mais criativo e meditativo pela manhã.

Humilha com brandura seu criado, ou, melhor dizendo, dá ordens ao mesmo tempo que realiza a importância da empatia. Também viaja bastante para dentro de suas fantasias eróticas, e o paninho com que esfrega o retrato empoeirado de sua amada, trazendo vivacidade a suas lembranças, é uma engenhosa metáfora para a masturbação, que deve ter rolado solta ali naquele quartinho: "Minha alma se precipitou do céu como uma estrela cadente, encontrou o outro num êxtase esplêndido e, ao participar dele, acabou por aumentá-lo".

Até aqui resenho seus afazeres arriscando um tanto do tom irônico que penso ter absorvido do autor. Mas quando Xavier escreve sobre "o outro", aquele que vive em nós, que divide o que somos com a nossa alma; sobre nosso lado animal, que muitas vezes por dia apenas obedece ao ser mais enlevado em nós, e tantas outras vezes toma as rédeas de nossos pensamentos e ações; quando conjectura sobre tudo isso, muito antes de Freud e da invenção da psicanálise, confesso que o levei bastante a sério.

No posfácio de Enrique Vila-Matas uma esperança (ou mais angústia?) para o fim de um confinamento, ou o breve instante em que nos livramos de uma viagem interna: "Do meu quarto, eu o vejo sair à rua. Será o final de sua viagem que o aflige assim? Como encaixa o primeiro golpe de ar? Saiba ou não, sua paródia das viagens há de significar um salto mental, um ponto de vista inédito, que permitirá a leitores futuros, sem sair de casa, o assombro de ver as portas do caos (...) o assombro de ver mais".

Viajar sem sair do próprio quarto, segundo o autor, é um chamado para os infelizes, os enfermos e os sem dinheiro. Parece que ele fala justamente com a nossa população brasileira deste 2020!


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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