ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A queda de George Papandreou é uma vitória do mercado financeiro, que
conseguiu enterrar a ideia --mal encaminhada-- do plebiscito na Grécia. O
pacote de resgate imposto pela Europa ao país é "uma forma de
neocolonalismo".
A análise é do economista chileno Gabriel Palma, 64, professor da
Universidade de Cambridge (Reino Unido). "Alemanha e França pensam que
têm o direito de decidir o que acontece na Grécia depois do resgate. A
falta de democracia é absoluta", diz.
Especializado em econometria e desenvolvimento, ele avalia que "o pior fantasma que há na Europa é a Itália".
Palma critica o que chama de "passividade da América Latina" em relação
ao crescimento puxado pelo preço excepcional das commodities e por
fluxos de capitais externos. A Argentina é exceção, pois "está tomando
medidas mais agressivas, mais pragmáticas".
Ataca a política de altos juros brasileira, que classifica como
"monetarismo do século 19", e define a desindustrialização do país como
um processo de "vandalismo econômico".
FOLHA - O que acontece na Grécia?
GABRIEL PALMA - O que acorreu na América Latina muitas vezes. Foi
criada uma crise e os que pagam pela crise são outros. A Grécia cortou
25% da educação pública, 25% da saúde pública, deixou a habitação a
zero. Nenhum desses setores foi causa da crise. Uns se beneficiaram e
são outros os que estão pagando. Na Grécia, entre 2002 e 2007, o valor
do estoque de bens financeiros (bolsa, ativos bancários, bônus públicos e
privados) triplicou em termos reais. Cresceram seis vezes mais rápido
que o PIB. A mentalidade moderna fala que o preço do ativo financeiro
sempre reflete os fundamentos da economia. Obviamente não é isso.
Por que houve essa reação tão forte contra o plebiscito, agora descartado?
Na Irlanda o governo anterior ficou com todas as perdas do sistema
privado. Fez sem perguntar a ninguém. Todos esses planos de resgate têm
um elemento muito antidemocrático. Passam a dívida privada para a
pública sem perguntar a ninguém. Chamar um referendo para o resgate não
tinha muito sentido porque não era o ponto fundamental, que é se a
Grécia segue no euro.
Na Islândia houve dois plebiscitos sobre a socialização das perdas. Se
se faz um plebiscito o mais provável é que se diga não. Que a dívida
privada fique com os privados. O grande erro de George Papandreou foi
não ter feito isso quando assumiu o governo em outubro de 2009. Quando
se passam perdas privadas para o setor publico tem que perguntar às
pessoas que vão pagar. Os setores financeiros têm a maior parte desses
governos no bolso. Ninguém quer a democracia. Ninguém quer o que houve
na Islândia. Papandreou estava fazendo algo que era necessário, mas mal
feito.
O que a Grécia deveria ter feito?
O fez a Argentina em 2003: renegociar imediatamente com os mercados
financeiros. Se eu vou a um banco e peço U$ 1 milhão para ir ao cassino e
perco, a culpa é minha. Mas também do banco que emprestou dinheiro para
uma coisa tão absurda. É assim o caso da Grécia. Os que emprestaram
essa quantidade de dinheiro à Grécia são igualmente responsáveis por
essa situação insustentável.
Na Grécia, até agora [segunda-feira, 7/11] não conseguiram chegar a um
acordo sobre o primeiro-ministro, já que a escolha obvia --o
ex-vice-presidente do Banco Central Europeu, Lucas Papademos-- está
reivindicando muitas condições. De qualquer forma, concordaram com uma
eleição geral em fevereiro, que não deve gerar um governo forte, pois
nenhum partido deve ganhar a maioria.
A ameaça da França e da Alemanha contra o plebiscito não deixam a Grécia numa situação de pouca independência?
Sim. As condições que a Europa impôs à Grécia para o plano de resgate
são uma forma de neocolonialismo. É cortar os gastos de educação, saúde,
habitação --que paguem os que não têm responsabilidade pela crise.
Houve um nível de brutalidade e de caráter antidemocrático muito forte.
Alemanha e França pensam que têm o direito de decidir o que acontece na
Grécia depois do resgate. A falta de democracia é absoluta.
A queda de Papandreou é uma vitória do mercado financeiro?
Sem dúvida. Isso que ele tinha feito, até poucos dias atrás, exatamente o
que os mercados financeiros queriam. Hoje os mercados financeiros e as
grandes corporações têm o poder de trocar governos, trocar
primeiros-ministros. Isso é o fundamental da falta de democracia.
Passado o drama [anúncio do plebiscito, queda de Papandreou] a atenção
se volta para a Itália.
O caso grego é o pior?
O pior fantasma que há na Europa é a Itália. Nos próximos dois anos 600
bilhões de euros, quase U$ 1 trilhão, da dívida vencem e precisam ser
renegociados. Qual será o preço? Não vejo de onde possa vir um governo
forte, racional, capaz de adotar políticas fiscais que faça a situação
sustentável. A menos que se tomem medidas muito drásticas. Uma das
poucas soluções para a Itália seria que, de forma unilateral,
transformasse sua dívida curta em dívida longa. Uma solução dolorosa.
A dívida total da Grécia é algo em torno de 350 bilhões de euros. E essa
é a quantia que a Itália precisa renegociar todo ano. Ao menos a Itália
não tem um déficit primário, como a Grécia, mas nas taxas de juros
atuais --aproximadamente 7% na renegociação da dívida-- o país está
entrando num esquema de Ponzi: precisam pegar dinheiro novo emprestado
apenas para pagar o serviço da dívida existente.
Ou seja, precisam adicionar o serviço ao estoque da dívida. O problema
central é que a dívida italiana, de quase 2 trilhões de euros, é cerca
de duas vezes todo o fundo de resgate do euro. E a Espanha pode ser a
próxima --embora a relação dívida/PIB seja apenas metade da italiana, o
déficit do setor é de 9% do PIB e o desemprego chegou a 21%.
Veja a confusão. A maior dívida pública na União Europeia é a da Grécia,
de 143% do PIB em 2010. Depois vem a Itália, com 120%. Bélgica,
Portugal e Irlanda, com menos de 100%.
A Grécia deveria ter renegociado de forma unilateral?
No primeiro dia. Como fez a Argentina. Os bancos europeus estão numa
situação precária não só pela situação da dívida pública, ativos da
dívida grega espanhola italiana, mas porque tinham ativos de subprime
dos EUA e outros ativos muito precários. Não há como subestimar a
precariedade dos bancos europeus.
E os resgates?
Os governos europeus saíram comprando dívida grega, que é de curto
prazo. Houve uma transferência da dívida do mercado financeiro para os
governos europeus. Esses governos europeus fizeram pressão em alguns
bancos para que eles também mantivessem a dívida grega. Se há um default
forte grego alguns bancos europeus vão sofrer fortemente,
principalmente alemães e franceses. Mas 100% desses bancos vão ser
resgatados pelos governos de seus países. Não vão fazer outro Lehman,
com grandes perdas privadas. A dívida pública européia vai aumentar mais
com o resgate desses bancos.
Está previsto um corte de 50% na dívida grega. Mas hoje os bônus valem quanto?
No mercado secundário o bônus vale menos de 50%. Hoje em dia não há
preço, está tudo no ar. Hoje não vale nada, até que as coisas se
resolvam. Antes dessa negociação era mentira que valiam 100%. Baixar a
50% é reconhecer um fato que já existe. Foi uma negociação da Alemanha e
da França com os bancos privados que têm a dívida grega.
Mas o grande problema é a dívida italiana. Os bancos alemães e franceses
têm muita dívida italiana. Esses 50% é sobre o que vale a dívida grega,
mas a maior parte dela está com os governos europeus e alguns bancos
grandes que têm de alguma forma a garantia dos governos. Se algum banco
entrar em dificuldade os governos vão resgatar esses bancos. Por isso
não creio que vá haver um grande mercado secundário de dívida grega como
houve na América Latina.
A China vai salvar a Europa?
China já tem U$ 600 bilhões de dívida europeia. A China também pode ter
muitas perdas. Mas os governos querem que a China compre mais, mais
dívida italiana e espanhola. O mais provável é que compre um pouco. A
pressão sobre a china é muito forte nesse momento, porque eles têm uma
quantidade enorme de US$ 3 trilhões de reserva. Podem comprar toda a
dívida espanhola e toda a dívida italiana. O grande problema dessa
dívida é que é de curto prazo.
Por que China faria isso?
Para a China não convém um desastre mundial; tem interesse em deixar as
coisas pelo menos como estão agora. Ela tem U$ 600 bilhões de dívida
europeia. Se a china comprar a divida haverá muito menos pressão para
que ela faça uma valorização da sua moeda. Há também fatores políticos. O
mais importante é que, se amanhã a China tomar Taiwan numa negociação e
a transformar numa Hong Kong, não haverá um país do mundo que vai se
atrever a levantar um dedo. É a questão política para a China: ter todo
mundo dependendo dela de tal forma que ninguém reclame sobre direitos
humanos, sobre a valorização da moeda, nem por sua política em relação a
Taiwan.
A China está desacelerando?
O crescimento continua a taxas muito espetaculares. A China é a única
coisa que funciona nesse mundo, com Índia e algo de Ásia. É o único
motor que está empurrando a economia mundial. Se desacelerar, complica a
situação. China e Índia têm um mercado interno fantástico. Se os
mercados externos se desaceleram, eles podem olhar mais para o mercado
interno. E a China tem uma situação de balanço de pagamentos muito
positiva.
Qual sua avaliação sobre as medidas sobre câmbio e fluxo de capital tomadas pela Argentina?
A Argentina é um caso à parte, faz coisas diferentes em política
econômica. No resto da América Latina, Brasil, Chile, Peru não houve
mudanças significativas de política econômica; são neoliberais. Os juros
do BC brasileiro são os mais altos do mundo; no câmbio, o real é o mais
sobrevalorizado do mundo, segundo o Goldman Sachs. São políticas
ortodoxas, como na grande parte da América Latina. O êxito tem se
baseado no crescimento dos preços das commodities e na grande entrada de
capital estrangeiro.
A situação desses dois fatores que têm empurrado o crescimento é
bastante incerta. O preço das matérias-primas não tem motivo para seguir
subindo na situação atual. E a entrada de capital pode mudar a todo o
momento. Os governos se ajustaram a isso como se fosse uma situação
permanente e não transitória. Fizeram ajuste pelo consumo, não por
investimento. Se os termos de intercâmbio voltam a níveis normais ou a
entrada de capital se reduzir, o ajuste que terá que fazer a América
Latina vai ser bastante forte.
E a probabilidade de que isso aconteça é alta. O preço das
matérias-primas está onde está metade por causa da China, da Índia etc. E
a outra metade é pela grande especulação das commodities. Essa
especulação pode perfeitamente terminar. Pode haver um ajuste muito
forte e muito rápido. Estamos dependendo de dois estímulos muito
instáveis. O problema é que América Latina se ajustou a isso. Se os
termos de intercâmbio fosse os históricos, o déficit de conta-corrente
do Brasil seria mais do dobro do que é agora.
Mas Brasil tem mercado interno grande, uma indústria. Mesmo assim o ajuste seria grande?
O mais importante que vai minorar o ajuste são as grandes reservas que
tem o BC; é um grande colchão. Isso México, Peru e Chile não têm. Com
sorte, o Brasil vai seguir. Com má-sorte vai desacelerar mais.
O Brasil deveria cortar mais os juros?
O que mais me perguntam quando viajo à Ásia é: o que estão pensando os
brasileiros para ter a política monetária que têm? Para mim é uma
situação de monetarismo do século 19. A única razão que existe é a
inércia. O ponto das taxas de juros é sempre o mesmo: é muito fácil
subi-las, mas muito difícil baixá-las, criou-se uma inércia. Como
subiram no nível que subiram é muito difícil baixá-las para ter uma
política monetária racional.
E as medidas argentinas?
Argentina é diferente na América Latina, tanto na política monetária
quanto nos problemas que tem. Não que eu seja otimista, mas ao menos,
uma coisa interessante na Argentina é que se está tomando medidas mais
agressivas, mais pragmáticas, no sentido de uma política monetária
expansiva, uma política fiscal expansiva, de uma regulação dos fundos de
pensão e de outras partes do mercado financeiro. Pelo menos está
fazendo algo.
Uma coisa que para mim me desespera é a passividade do resto da América
Latina, de um pouco sentar-se e esperar para ver o que acontece. A
Argentina tem uma política mais pró-ativa, não só reativa. Isso ao menos
lhe dá uma possibilidade de seguir adiante. Não dá para subestimar os
problemas da economia argentina.
Por quê?
A Argentina tem uma situação de balança de pagamentos muito mais
complicada que o Brasil. Não só o balanço de pagamentos depende do preço
alto das commodities, mas também as receitas públicas. O dia em que o
preço da soja e de outros produtos importantes para a Argentina, como o
trigo, voltar a seus níveis normais, o país não só ter um problema de
balanço de pagamentos, mas também fiscal. No dia em que os preços do
ferro e da soja voltarem a níveis normais, o Brasil terá um problema
sério de balanço de pagamentos, mas não de contas públicas. Argentina
terá os dois.
Mas as medidas são boas?
São muito melhores do que não fazer nada. Melhor do que a posição
brasileira de usar só política monetária, deixar o câmbio flexível,
deixar que os mercados ajeitem as coisas. Hoje em dia eles não são
capazes de ajeitar nada. Portanto, fazer algo na direção certa é muito
positivo. É difícil saber se essas medidas serão suficientes, ou ela
terá que tomar medidas mais fortes.
O que o Brasil deveria fazer?
Sem dúvida não tem nenhum sentido o câmbio nem a taxa de juros. Essas
duas variáveis não têm nenhum fundamento na realidade da economia
brasileira nem de nenhuma perspectiva de teoria econômica ou de um ponto
real. É basicamente deixar que os mercados financeiros internacionais
determinem o tipo de câmbio brasileiro. É inaudito, pois o Brasil
deveria estar defendendo a sua capacidade produtiva doméstica. Mas com
esse câmbio e com essa taxa de juros, estão destruindo a indústria
manufatureira brasileira.
Estamos vivendo uma situação em que os países, incluindo China e Índia,
deverão cuidar mais de seus mercados domésticos como motor de
crescimento. Nessa situação é imperdoável o que o Brasil fez com sua
indústria manufatureira. Em 1980, o valor da produção manufatureira
brasileira em dólares era igual que a soma da China, Índia, Coreia,
Malásia e Tailândia. Hoje é 10% dessa soma.
Isso é vandalismo econômico. O Brasil tinha uma capacidade manufatureira
que o colocava numa situação muito favorável para aproveitar a
globalização com uma força industrializadora interna. E, por sua
política monetária, cambial, de taxa de juros, e abandono da política
industrial fez exatamente o contrário. Fez com que a indústria
brasileira como percentagem do PIB caísse à metade do que era em 1980.
Custa muito construir e é muito fácil destruir. Ter construído uma
indústria manufatureira como tinha o Brasil em 1980. Tinha os seus
problemas, mas eram muito menores que os que tinham a indústria
manufatureira chinesa ou hindu. Esses países conseguiram uma
industrialização sem precedentes. O argumento de que isso aconteceu
porque os salários são menores na Índia e China do que no Brasil não tem
sentido.
Porque o que importa do ponto de vista produtivo é o custo laboral por
unidade de produto. Ainda que o salário brasileiro fosse o dobro do
chinês, a produtividade brasileira era três vezes a chinesa. Era mais
barato produzir no Brasil. O custo unitário da produção manufatureira
brasileira nos anos 1980 era menor que o chinês. Porque o diferencial de
produtividade era maior que o diferencial de salário.
O Brasil tinha uma indústria muito poderosa, uma situação de baixos
custos produtivos, numa situação ótima pra aproveitar a globalização e
transformar-se num centro industrial muito forte, especialmente no
processamento de matérias primas. E, em lugar disso, abandonou sua
indústria manufatureira à sorte dos mercados, com esse tipo de câmbio,
taxas de juros. Os países asiáticos, partindo de uma situação muito pior
do que a brasileira, o superaram.
Daqui para adiante, os mercados domésticos vão ter um papel mais
importante para o crescimento, mais do que tiveram nos últimos 20, 30
anos. Isso vai custar caro ao Brasil. Como há setores dinâmicos na
economia brasileira, há pelo menos uma base para reconstruir a
indústria. Mas para isso precisa mexer no câmbio, na política
industrial, uma taxa de juros. É necessário fazer mais o que Luciano
Coutinho está tentando fazer no BNDES, e não o que o BC está fazendo. É
preciso um projeto nacional.
Entrevista publicada na
Folha.com .