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domingo, 7 de julho de 2024

Biografia


meu pai apostava o feijão no futebol

tinha drible ligeiro, batia forte na bola


eu apostei a vida no poema

nas promessas que ele inventava


cada um escolhe o deus 

que nos salva e condena


nunca acertamos um milhar

nenhuma pule premiada


não houve livro na lista dos mais

vendidos nada no jogo do bicho


no fim sobramos dois vagabundos

esperando explodir o fim do mundo


ele cansou, partiu primeiro, enquanto

eu vou indo, de domingo a domingo


pagando o preço do precipício que

é viver sem ter mais nada a perder



Poema de Jorge Augusto publicado na revista piauí de novembro de 2023, edição 206.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Aprender a morrer


Aprender a morrer


Maria do Carmo Ferreira


Olhar compadecido para as coisas
que nunca foram vistas, por se olhar
distraidamente, tentando-se adiar
o dom da vida que se faz presente

Olhar com os olhos, mas internamente.
Olhar com o coração, mais que os sentidos
que tudo captam e tudo dão ouvidos
salvo ao mistério que circunda a gente

Olhar como uma criança desarmada 
que no colo dos pais mais se abandona
ao fruir do instante que a contém e capta
toda a alegria de viver avante

Olhar intensamente para dentro,
mas com a sabedoria de quem sabe 
que não se nasce para morrer, mas sempre
se morre a cada instante em que se nasce

para ressuscitar gloriosamente
em outras dimensões que não nos cabe
viver antes que a morte nos frequente
a cada passo, desde a eternidade 

Na revista piauí, edição 182, novembro de 2021. 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Poesia de Caleb Femi discute racismo e guerra entre polícia e tráfico


A foto poderia ser de uma superquadra de Brasília, mas é de um conjunto habitacional azaradíssimo num bairro pobre de Londres. Claro, aquilo está longe de ser uma favela. Mas racismo policial, guerra de traficantes e pencas de adolescentes assassinados fazem parte do cotidiano dali, como em qualquer grande cidade brasileira.

Uma diferença é que, na Inglaterra, há dezenas de prêmios para escritores, e Caleb Femi, britânico nascido na Nigéria em 1990, acaba de ganhar o de melhor livro de estreia para poesia neste ano.

"Poor", ou pobre, foi editado pela Penguin, e entremeia os poemas com fotografias tiradas pelo próprio autor. Retratam a vida e o ambiente dos jovens negros do bairro de Peckham, famoso pela precariedade econômica e social de seus habitantes.

Mas o livro poderia também se chamar "Concreto". Questiona seguidamente a cegueira do urbanismo modernista, que em Londres como em outros lugares construiu mega edifícios de aparência presidiária, achando que criava soluções "humanas" para a habitação popular.

Do que é feito o concreto? O poeta responde, enumerando muitas coisas: cimento, areia, chiclete, cordão de isolamento policial, Ovomaltine derramado, água sanitária... Quais suas propriedades? Recolho duas respostas: a capacidade de resistir ao peso de um cortejo fúnebre, capacidade de absorver o som dos socos de uma mãe desesperada.

Essa ligação entre maternidade e gueto aparece ainda com maior força imagética em outro poema, onde o sangue de um adolescente assassinado escorre pelo concreto do conjunto habitacional; é como se fosse um parto, diz Femi, e a dor dessa morte é um dente podre "que tem de ser arrancado".

Quem gostaria, afinal, de ter um filho para que dali a uns 15 anos ele seja assassinado pela polícia ou por traficantes? Terrivelmente, surge a ideia de que cada mãe é uma criadora de mortos, e de mortes.

Em "A Primeira Vez em que Você Pega numa Arma", Caleb Femi descreve uma sensação de segurança e acolhimento. O cabo do revólver "era suave/ como o seio da minha mãe. Minhas gengivas/ ainda se lembravam daquela sensação/ e transmitiram para minha mão essa memória."

É assim, nessa ideia de perpétuo nascimento para a morte, que a sucessão de chefes de gangue assassinados se traduz em linguagem bíblica: Fulano, que gerou Beltrano, que gerou Sicrano...

O livro apresenta então uma sequência de retratos dos "durões", "duronas" e das vítimas da vizinhança, um pouco como as letras de milonga em que Jorge Luis Borges homenageava ironicamente os malfeitores da velha Buenos Aires.

É o caso de um tal Marlon: "quando a polícia finalmente/ pegou ele, dizem/ que tinha munição/ suficiente para dar cabo de Deus."

Em "Agricultura do Concreto", Caleb Femi conta como se faz para arar o seu território: "juntamos revólveres/ e facas/ e pedras/ e chamamos eles de ferramentas/ para trabalhar a terra."

É um mundo de ameaças, antros de crack e execuções simuladas. "Dois segundos antes do tiro", o menino a ser executado "inspira fundo um bocado de ar/ na esperança de que o ar o mate antes do que o revólver".

Em "O Negro de Schrödinger", Caleb Femi faz referência ao conhecido paradoxo da física quântica, em que se imagina um gato, preso dentro de uma caixa, sobre o qual não se pode dizer se está vivo ou morto. Nessa teoria, o "gato de Schrödinger" deve ser descrito como "vivo-morto", ou "vivorto", ou "morvivo".

Pois bem. O poeta descreve então outra caixa —a de um aparelho de TV— em que são transmitidas notícias sobre um episódio de saque e vandalismo na cidade. Aparecem imagens de um ônibus pegando fogo, de garotos usando agasalho com capuz, e de um céu "que se recusa a trazer chuva e se recusa a mostrar o sol", uma vez que "resolveu cuidar da própria vida".

Aí a televisão mostra o rosto de um jovem negro, Mark Duggan, assassinado pela polícia no conflito. "Era uma foto de mim mesmo, ainda que eu não estivesse morto", diz o poeta, e continua: "é assim que é ser negro por aqui: tipo estar morto e vivo ao mesmo tempo".

E o capuz de um agasalho parece, para ele, o botão de uma flor que vai desabrochar, em garotos "bonitos como o medo", dormindo não mais num prédio de concreto, mas em outro lugar, "verde, eternamente verde". Longa vida a Caleb Femi.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Quando eu morrer


Os deuses dão a sombra e a luz. A sombra brilha,
E o coração da luz esconde um claro-escuro.
O mal vive no bem. Não há remédio, filha:
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
O que nos cabe aqui é a triste maravilha.
Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.
Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
Mas é nossa missão cair nessa armadilha,
E o que passou persiste em seu estado puro.
Não vou morrer quando eu morrer. Pois, minha filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.

O poema é atribuído a José Francisco Botelho, e eu vi na linha de tempo da(o)s Amiga(o)s da Roda de Leituras.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O tempo

 Carrego meus fantasmas

Dentro de um armário

Entalhado no peito

Eu sou o que tenho feito

Apesar do grande defeito,

De sonhar mais que o pássaro,

Que voa sem fazer cálculos.

Eu sou eu e os meus cacos

Uma caneca de louça sem asa

Uma latinha de pastilhas

Fotos de minhas filhas

Lembranças feito ilhas

De um futuro no passado,

O presente encarcerado,

Lobo depois das trilhas,

O olhar depois das chuvas.

Do blogue do Juremir Machado da Silva

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Obras de Sérgio Medeiros e Rodrigo Garcia Lopes ensinam a contemplação

 Olhar o mundo pela janela sempre foi ocupação de poetas, mas a Covid intensifica a coisa.

Vamos todos ficando mais contemplativos, distantes e curiosos no que diz respeito à vida alheia.

Mais do que isso, há a estranheza diante dos novos hábitos, o surrealismo das ruas desertas, o espanto diante da morte coletiva. Assunto não falta.

Em “O Enigma das Ondas”, livro recém-lançado pela Iluminuras, o poeta Rodrigo Garcia Lopes vai fundo em seu mergulho pelo tempos atuais.

“É a face coberta por um pedaço de pano”, diz ele, “é o humano reaprendendo a ser humano.// É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,/ é o translúcido azul do céu de Pequim.// É o papa rezando na São Pedro deserta,/ são as águas transparentes dos canais de Veneza.// Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,/ presos no labirinto com Minotauro e Teseu.”

A sucessão de dísticos rimados, que se estende longamente, produz o efeito de quem folheia as páginas de um mesmo jornal, num dia que não acaba. As notícias renovam suas surpresas, mas a situação não muda.

É também esse o espírito de um poema sobre o filme “O Feitiço do Tempo”, em que Bill Murray acordava sempre no mesmo dia do ano.

Com grande perícia, Rodrigo Garcia Lopes emprega a forma da sextina —em que a palavra final de cada verso tem de ser repetida ao longo de seis estrofes diferentes.

Desse modo, numa estrofe o personagem, Phil, percebe que “Às seis tocou o rádio-relógio que ele jogara fora:/ “Mas que inferno este eterno presente!”/ No quarto, tudo no mesmo lugar de ontem,/ quando ao som de Sonny & Cher se levantou às seis/ e diante do espelho perguntou: ‘Será diferente hoje?’/ —Nasci de mim quando acordei. Tento outra vez?”.

Em outra estrofe, as últimas palavras se repetem: “‘A marmota viu a sombra antes de ontem,/ ontem, hoje também. Vou dizer mais uma vez,/ Sou imortal! Sou Deus!’ Foi quando seis/ caipiras jogaram o homem do tempo pra fora/ do café. Acreditava agora estar num mágico presente./ ‘Algo me diz que nada será como hoje’”.

A sensação de aprisionamento é vencida, por vezes, num gesto raivoso. Em “Últimas Notícias”, Garcia Lopes coleciona clichês jornalísticos no começo de cada verso, subvertendo-os num desbordamento poético: “o mercado assimilou mal a notícia do vazamento da neblina nas montanhas, o sonho dos homens, essa maldita vontade de durar”.

Outras vezes, a contemplação e o assombro vencem o sentimento de sufoco, e o tempo, que estava em círculo vicioso, parece conhecer uma ruptura: “Um clarão incrível! revela/ o vulto recortado da costa/ mais ao sul onde o escuro/ se rebela num flash/ de uma câmera gigantesca/ minutos antes do ataque/ da tempestade: montanhas”.

É como se só pudéssemos ver o que já acabou de existir.

Não sei se a quarentena inspirou diretamente os textos de outro poeta, Sérgio Medeiros. Mas, em “O Barraco das Letras e dos Hieróglifos” (disponível gratuitamente em medeirossergio.blogspot.com), o jogo entre prisão e liberdade, morte e sobrevivência, parece responder às sensações da pandemia.

Como nos outros livros de Medeiros, há aqui uma capacidade sobrenatural de anotar, como se visto de longe, ou mais precisamente de uma janela de apartamento, o evento minúsculo, impregnado de vida.

“De costas no chão o besouro parece meio adormecido…”, escreve Medeiros; “então as formigas se põem a embalá-lo…”. Nesses poemas, sempre de duas linhas, topamos com tudo quilo que poderia voar, mas não voa, e o que não pode, mas voa mesmo assim.

“Braços de motoristas pendem/ sobre a rua como asas inúteis”, diz um poema, enquanto em outro “as nuvenzinhas são como dois filhotes de cadela:/ se cheiram e se mordem e depois rolam abraçadas”. Enquanto isso, “A pista está vazia mas lá na cabeceira envolta numa baforada/ de calor uma cauda opaca gira trêmula”.

E é ainda de confinamento que se trata, quando “no quarto frio do menino o cata-vento verde/ gira sem parar no pote de lápis sobre a mesa”, ou “na única sacada acesa da ruazinha escura/ uma moça dá murros num saco de pancada”. Ou quando “escorrem fios brancos das/ orelhas dos adolescentes”.

Em outra visão do aeroporto, Sérgio Medeiros nota que “a sombra rápida passa pela pista silenciosamente/ sem o avião grande que só toca o solo depois”.

Há muita arte em deixar esse “depois” como última palavra do verso. Como no “Feitiço do Tempo”, não há quem não esteja esperando, hoje, esse “depois” que nunca chega.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 30 de março de 2020

Horizonte


Pra longe é minha lente
De névoa é minha quarentena
Te quero aqui de repente

Por Bárbara Sanco

30/03/2020.

domingo, 22 de março de 2020

Agora almoçar

Quanto tempo teremos?
Melhor esquecer o relógio
Melhor almoçar enquanto podemos

Por Bárbara Sanco 

22/03/2020.

Quarentena em Porto Alegre

Queria folga da humanidade
Um anjo disse amém
Meu pedido virou realidade

Por Bárbara Sanco 

22/03/2020.

Quarentena em POA

Em livros e filmes esqueço
Entre histórias de outros
Do mundo doente me perco

Por Bárbara Sanco

22/03/2020.

Quarentena na Praia

Entre meus dedos areia
No corpo sol e silêncio
E do mundo fico alheia

Por Bárbara Sanco

22/03/2020

Agora almoçar

Manter a rotina
Entre o dormir
E o acordar

Por Ana Mello

22/03/2020.

Quarentena em POA

A janela é o limite
Antes privacidade
Agora desejo de liberdade

por Ana Mello

22/03/2020.

Quarentena na Praia

Vento soprando recados
Sol, praia e mar
Desocupados

por Mário Roberto Ulbrich

22/03/2020.

domingo, 8 de março de 2020

Eileen Myles e Bruna Beber

eu gosto mesmo é de ficar bêbado
e estar apaixonado
ou pelo menos bêbado
mas de preferência apaixonado
com duas ou três cervejas
na cabeça vadiando pelo centro
e repassando mentalmente um poema
sobre você
quando não estou 
bêbado nem apaixonado
quase morro de tristeza
lembro das pessoas
que levam a vida como zumbis
os olhos queimados pela visão do nada
a ouvir o canto das sereias
e me pergunto se vou aguentar até o fim
mas em geral não penso nelas
em geral só penso em pessoas apaixonadas
e estou sempre marcando o próximo porre
com meus colegas de copo e de cruz
também gosto de ver minhas canetas morrerem
não gosto quando elas somem
ou são roubadas
gosto muito das palavras lataria
fuselagem
e adoro aquelas cenas de paz
dos filmes de gângsteres
em que um gordinho de calças arriadas
caga e folheia o jornal de esportes
segundos antes de ser metralhado
pelo bando inimigo

Poema de Fabricio Corsaletti, na Folha de São Paulo.  

quarta-feira, 27 de março de 2019

Um profeta americano centenário

Aí por 1955 ou um pouco mais tarde, tudo indicava que o mundo estava próximo do fim. O perigo de uma guerra nuclear preocupava as pessoas com uma intensidade que o aquecimento global, hoje em dia, nem de longe possui.
A proximidade do apocalipse estimula, claro, o aparecimento de profetas. Para que eles surjam, entretanto, outras condições são necessárias. Eles têm de circular sem rumo pelas cidades e pelos povoados, sem vínculos com a família, com as igrejas e as instituições.
Num mundo burguês, industrial e secularizado, essa gente sem eira nem beira passou a responder pelo nome de "bohème", os "boêmios", os artistas como Baudelaire, Verlaine e Rimbaud.
Os profetas viraram poetas, músicos e pintores "malditos", até que o mercado de arte, o mundo editorial e as universidades passassem a apostar neles.
O quadro mudou. Hoje, o que se tem é um "precariado" intelectual, no qual o jovem ou o velho de talento se marcam menos por rejeitar a cultura estabelecida (que tolera praticamente tudo) e mais pela falta de emprego fixo.
O problema do "precariado", em oposição à antiga "boêmia artística", é excesso de oferta, não falta de demanda.
Os "malditos" de hoje correm mais o risco de ter o nome no Serasa do que de serem presos ou de terem suas obras proibidas, como acontecia no passado.
Nesta semana, o poeta americano Lawrence Ferlinghetti alcançou a idade bíblica de cem anos. É o último sobrevivente do movimento "beatnik", que, na Califórnia e na Nova York dos anos 1950, inaugurou a sensibilidade pacifista, ecológica, libertária e contracultural até hoje presente no pensamento progressista.
Ferlinghetti comemorou seu centenário publicando um livro autobiográfico, "Little Boy", que mais uma vez afirma seu imenso amor pela vida e pelo mundo.
Ele passou os primeiros anos de vida na França, criado por uma tia (a mãe não tinha dinheiro para criá-lo).
Ferlinghetti foi parar num orfanato, foi adotado por um casal de ricaços americanos, fez serviço militar no final da Segunda Guerra, estudou na Sorbonne, e finalmente abriu uma livraria e editora em San Francisco, a City Lights, que seria o foco da literatura alternativa americana na década de 1950.
Os "beats" a que Ferlinghetti se associou (Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs) adotaram esse nome não porque estivessem pensando em alguma "batida" de rock, mas porque buscavam um novo tipo de "beatitude" na existência material, com a ajuda de drogas, álcool e sexo.
Contavam também, e sobretudo, com a contemplação maravilhada das coisas. No seu livro mais importante, "Um Parque de Diversões na Cabeça" (muito bem traduzido por Eduardo Bueno e Leonardo Fróes para a L&PM), Ferlinghetti transmite essa experiência de um modo adorável, despretensioso e coloquial.
Veja-se o poema número 20. "Na confeitaria barata para além do El [o elevado do metrô]/ foi onde pela primeira vez/ me apaixonei/ pela irrealidade/ Os drops reluziam na semi-obscuridade/ daquele entardecer de setembro/ Um gato deslizava sobre o balcão entre pirulitos/ e pães de forma/ e Oh chicletes de bola (...)"
As cores falsas da sociedade de consumo se fundem, em outros poemas, ao "amarelo varrido" pelo "último sol", enquanto "gaivotas quase caem na terra firme". Ou aos "campos da infância", onde "o arco-íris se mistura na memória com a palha" e "cada coisa viva/ lança na eternidade a sua sombra."
Com versos quebrados, espalhados pela página, Ferlinghetti expressa uma vivência de vagabundagem, de boêmia, em que a certeza do fim do mundo algumas vezes leva ao puro prazer pela vida presente, e outras vezes às esperanças de transformação.
O problema dos poetas que se recusam a seguir os limites do formalismo, buscando uma lírica mais espontânea e calorosa, é que terminam frequentemente presos na armadilha da retórica. O impulso poético se expande para fora do sentimento pessoal, tornando-se invocação, discurso, profecia.
A saída de Ferlinghetti é temperar isso com ironia, como se desfizesse criticamente o êxtase verbal a que se entrega. "Estou esperando", diz ele num longo poema, "que a vida comece (...) e estou esperando/ soltar velas e zarpar para felicidade/ e estou esperando/ um Mayflower reconstruído/ que chegue à América/ com os direitos de sua epopeia para quadrinhos e para TV/ já vendidos antecipadamente/ para os nativos"...
Aos cem anos de idade, a vida de Ferlinghetti está apenas começando.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

sábado, 2 de março de 2019

Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto 
Silencioso e branco como a bruma 
E das bocas unidas fez-se a espuma 
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. 

De repente da calma fez-se o vento 
Que dos olhos desfez a última chama 
E da paixão fez-se o pressentimento 
E do momento imóvel fez-se o drama. 

De repente, não mais que de repente 
Fez-se de triste o que se fez amante 
E de sozinho o que se fez contente. 

Fez-se do amigo próximo o distante 
Fez-se da vida uma aventura errante 
De repente, não mais que de repente.

De Vinicius de Moraes.


28/02/2019.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Escritores na guerra síria

A guerra na Síria completa seis anos em março. O que foi àquela época descrito pelo regime como protestos pontuais e pela oposição como uma revolução é hoje um longo e imparável confronto.
Como todos os conflitos, este carece de sentido. Mas escritores sírios se esforçam desde já para entender e explicar suas experiências, que serão o grande assunto de sua ficção durante as próximas décadas.
Foi o que aconteceu no vizinho Líbano, cujos pensadores se voltaram ao confronto civil de entre os anos de 1975 e 1990, produzindo os clássicos de sua literatura.
A partir dessa constatação, a revista literária "Banipal", publicada em Londres, dedicou seu número mais recente a 12 autores sírios, traduzindo trechos de seus trabalhos.
São pequenos fragmentos, como as pedras do minarete da antiga mesquita de Aleppo, espalhadas pela esplanada depois de um bombardeio. Mas são registros importantes de como artistas enxergam a guerra enquanto ela ainda é travada.
Hala Mohammad descreve, no poema "Empreste-me a janela, estranho", a experiência de deixar o lar -um drama vivido por outros milhões de sírios, incluindo aqueles que se refugiaram no Brasil.
Ela conta que, após os embates, ninguém voltou a suas casas. Nem mesmo as casas retornaram a si mesmas.
"Os coelhos nos campos, embaixo da erva incinerada pelo napalm, pelo gás de cloro e sarin, fecham seus olhos diante das câmeras, não querendo ser fotografados", escreve. "As crianças morreram. Para quem, então, contar histórias?"
Fawaz Kaderi, por sua vez, narra um cortejo fúnebre. "Essa criança, carregada em ombros, observa a todos de uma rachadura na vida", escreve.
"Uma mulher balança sua cabeça de maneira violenta. Levante, meu menino. O garoto ainda está inerte. O universo tremeu e o assassino sorriu."
Esses pequenos trechos, incluindo também um texto do premiado Khaled Khalifa (autor de "Em Elogio ao Ódio"), são vozes distantes, sem tradução extensiva ao inglês e provavelmente inéditas em português por um longuíssimo tempo.
Os relatos desses 12 autores ainda não serão, pois, lidos ao lado das reportagens jornalísticas e dos discursos políticos.
Mas, uma vez consolidados pelos anos, seus livros vão solidificar o horror de mais um conflito que não precisava ter sido travado.
Essa parece ser, de uma maneira mais ampla, a missão entregue pelo escritor Nouri al-Jarrah a todos os refugiados sírios no final de seu poema "Um Barco para Lesbos":
"Zarpem em todas as direções e, depois da tempestade e do dano, ergam-se em todas as línguas e em todos os livros". "Apareçam em todos os territórios e levantem-se como o raio nas árvores."


Texto de Diogo Bercito, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Morre, aos 86 anos, o poeta Ferreira Gullar

Morre, aos 86 anos, o poeta Ferreira Gullar

Escritor estava internado no Rio de Janeiro
Um dos mais importantes nomes da literatura brasileira, o poeta Ferreira Gullar morreu neste domingo, aos 86 anos. Ele estava internado no Hospital Copa D'Or, na zona Sul do Rio de Janeiro, e estaria com um quadro de insuficiência respiratória e pneumonia, apontada como causa da morte. Ainda não há informações sobre o velório.
Além de poeta, Gullar era ensaísta, crítico de arte, dramaturgo, biógrafo, tradutor e memorialista. Quarto dos 11 filhos de Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart, ele nasceu José de Ribamar Ferreira no dia 10 de setembro de 1930 em São Luiz, no Maranhão. Dividiu os anos da infância entre a escola e a vida de rua, jogando bola e pescando no Rio
Bacanga.
No começo, acreditava que todos os poetas já haviam morrido e somente depois descobriu que havia muitos deles em sua própria cidade, a algumas quadras de sua casa. Com 18 anos, passou a frequentar os bares da Praça João Lisboa e o Grêmio Lítero-Recreativo, onde, aos domingos, havia leitura de poemas.
Descobriu a poesia moderna apenas aos 19 anos, ao ler os poemas de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Ficou escandalizado com esse tipo de poesia e tratou de informar-se, lendo ensaios sobre a nova poesia.
Pouco depois, aderiu a ela e adotou uma atitude totalmente oposta à que tinha anteriormente, tornando-se um poeta experimental radical, que tinha como lema uma frase de Gauguin: "Quando eu aprender a pintar com a mão direita, passarei a pintar com a esquerda, e quando aprender a pintar com a esquerda, passarei a pintar com os pés".
Ou seja, nada de fórmulas: o poema teria que ser inventado a cada momento. "Eu queria que a própria linguagem fosse inventada a cada poema", diria ele mais tarde. Assim nasceu o livro que o lançaria no cenário literário do país em 1954: "A Luta Corporal".
Os últimos poemas deste livro resultam de uma implosão da linguagem poética e provocariam o surgimento na literatura brasileira da "poesia concreta", de que Gullar foi um dos participantes e, em seguida dissidente, passando a integrar um grupo de artistas plásticos e poetas do Rio de Janeiro: o grupo neoconcreto. O movimento neoconcreto surgiu em 1959, com um manifesto escrito por Gullar, seguido da teoria do não-objeto. Esses dois textos fazem hoje parte da história da arte brasileira, pelo que trouxeram de original e revolucionário. São expressões da arte neoconcreta as obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica, hoje nomes mundialmente conhecidos.
Experiências
Gullar levou suas experiências poéticas ao limite da expressão, criando o "Livro-Poema" e, depois, o "Poema Espacial", e, finalmente, o "Poema Enterrado". Este consiste em uma sala no subsolo a que se tem acesso por uma escada; após penetrar no poema, deparamo-nos com um cubo vermelho; ao levantarmos este cubo, encontramos outro, verde, e sob este ainda outro, branco, que tem escrito numa das faces a palavra "rejuvenesça".
O poema enterrado foi a última obra neoconcreta de Gullar, que afastou-se do grupo e integrou-se na luta política revolucionária. Entrou para o Partido Comunista e passou a escrever poemas sobre política e participar da luta contra a ditadura militar que havia se implantado no país, em 1964. Foi processado e preso na Vila Militar. Mais tarde, teve de abandonar a vida legal, passar à clandestinidade e, depois, ao exílio. Deixou clandestinamente o país e foi para Moscou, depois para Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires.
Voltou para o Brasil em 1977, quando foi preso e torturado. Libertado por pressão internacional, voltou a trabalhar na imprensa do Rio de Janeiro e, depois, como roteirista de televisão. Durante o exílio em Buenos Aires, escreveu "Poema Sujo", um longo poema de quase cem páginas e que é considerado sua obra-prima. Esse poema causou enorme impacto ao ser editado no Brasil e foi um dos fatores que determinaram a volta do poeta a seu país.
De volta ao Brasil, Gullar publicou, em 1980, "Na vertigem do dia" e "Toda Poesia", livro que reuniu toda sua produção poética até então. Voltou a escrever sobre arte na imprensa do Rio e São Paulo, publicando, nesse campo, dois livros "Etapas da arte contemporânea" (1985) e "Argumentação contra a morte da arte" (1993), onde discute a crise da arte contemporânea.
Outro campo de atuação de Ferreira Gullar é o teatro. Após o golpe militar, ele e um grupo de jovens dramaturgos e atores fundou o Teatro Opinião, que teve importante papel na resistência democrática ao regime autoritário. Nesse período, escreveu, com Oduvaldo Vianna Filho, as peças "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come" e "A saída? Onde fica a saída?".
De volta do exílio, escreveu a peça "Um rubi no umbigo", montada pelo Teatro Casa Grande em 1978. Gullar afirmava que a poesia era sua atividade fundamental. Em 1987, publicou "Barulhos" e, em 1999, "Muitas Vozes", que recebeu os principais prêmios de literatura daquele ano.
Durante sua trajetória, obteve diversos prêmios e láureas, incluindo uma indicação ao Nobel de Literatura em 2002. Em 2010, recebeu o Prêmio Camões, mais importante premiação literária da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Um ano depois, também venceu o Prêmio Jabuti com o livro "Em alguma parte" - ele já havia conquistado a premiação em 2007, pelo livro "Resmungos", que reúne crônicas publicadas no jornal "Folha de São Paulo".
Ferreira Gullar foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2014, ocupando a cadeira nº 37. Também recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio da Faculdade de Letras da instituição.

Reprodução do Correio do Povo

domingo, 6 de novembro de 2016

Discípula de Ana C., escritora insiste no registro de sua vida

Discípula de Ana C., escritora insiste no registro de sua vida


FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É bem possível que Alice Sant'Anna seja quem mais racionalize e aplique, em sua poesia, as técnicas de despistamento e o intencional movimento pendular de confissão e ficção presentes na poesia de Ana Cristina Cesar.
Num ensaio recente sobre os rascunhos e originais que compuseram o livro "A Teus Pés", a aplicada discípula salienta, justamente, o "tom de segredo ao pé do ouvido", entre vários outros aspectos que caracterizam os poemas daquele livro de 1982.
Apropriação de versos alheios, citações disfarçadas, recurso ao palimpsesto, vampiragens (Alice Sant'Anna alerta: "ou homenagem, bem entendido") têm serventia para a constituição das falsas memórias, das criativas reinvenções de espaços e tempos que podem ou não terem existido, uma vez que toda memória é traição, toda biografia é recordação falseada.
A mesma fluidez enganosa das lembranças se reproduz na falta de distinção entre poema e prosa que caracteriza "Pé do Ouvido".
O longo poema de quase 50 páginas se divide em duas partes (a segunda, brevíssima) e flagra a poeta em constante movimento: "descer a brook street/ os sapatos novos/ reluzentes com sola de madeira/ que fazem barulho".
A partir daí, tem início uma série de justaposições e de interferências, que inserem blocos de mais poemas, com pensamentos, anotações, reparos, perguntas, observações díspares de quem se desloca: "se tivesse o corpo macio / faria a posição dos jogadores de beisebol / antes de arremessar a bola / talvez o beisebol tenha sido inventado / só para que esse movimento seja possível.
Dificilmente o poema abandonará esse padrão de inserir livres associações e alusões indecifráveis (mesmo porque o que está em foco é a história pessoal de uma "ela").
Obviamente, o leitor poderá discordar de partes autônomas do poema, a exemplo da afirmação pueril de que "na poesia japonesa quase não / se vê metáfora".
Um poeta como Hagiwara Sakutaro confrontou a tradição do simbolismo e assim escreveu sobre o mesmo barulho dos sapatos em "Uivando à Lua" (1917), com seu vigoroso controle das metáforas e expansivo coloquialismo.
Em "Pé do Ouvido", as menções à poesia japonesa estão distribuídas ao longo do poema, mas, ironicamente, não surgem dúvidas sobre uma palavra, um verso ou uma expressão naquela língua oriental.
Deslocando-se sempre, "ela" pode, no entanto, perguntar abruptamente questões de inglês, ecoando, de novo, Ana Cristina Cesar: "a diferença entre solitude / e loneliness qual é?".
"Pé do Ouvido", por suas características, mal se distingue da sensibilidade e do estilo de quem compôs "Rabo de Baleia" (2013), o livro anterior de Alice Sant'Anna.
Existe em "Pé do Ouvido" a mesma tendência ao registro que se manifesta, por exemplo, em "14, Dorchester Place". É o que eu agora denomino de aventuras planas, acúmulo de notações sem qualquer culminância.
Longos trechos de indubitável prosaísmo poderão surgir ("a bolinha que joga dentro da secadora/ é para evitar a eletricidade estática/ no frio as roupas dão choque/ a cortina o lençol até o carpete / dão choque/ nos fones uma voz feminina/ muito aguda"), mas a poeta segue célere na marcação diária da sua vida –, e o leitor, hipócrita ou não, que a siga até onde for possível.


Reprodução da Folha de São Paulo