domingo, 31 de outubro de 2021

Tudo é game


O capitão James Kirk voltou ao espaço. Na realidade, aos 90 anos de idade, o ator William Shatner, que há meio século interpretava o comandante da Enterprise em "Jornada nas Estrelas", cruzou pela primeira vez a linha divisória da atmosfera.

Tudo isso como cortesia do bilionário Jeff Bezos, que mandou a espaçonave a cem quilômetros da Terra com três outros turistas, pagantes. O custo é exorbitante, mataria a fome de milhares de pessoas.

Bezos, porém, é fã da série e, claro, da promessa do capitão Kirk de avançar numa imaginária fronteira final para "explorar mundos estranhos, buscar novas vidas". Nas telas, o voo tinha ritmo de eternidade. Na vida real, a ida e volta durou dez minutos, com frações de tempo lá fora. Mas foi o bastante para o ator: "Vi a escuridão".

Coisas assim acontecem num momento em que se torna patente a insólita proximidade entre o mundo do espetáculo e o real comum.

Na Netflix, o desdobramento de um game catalisa as atenções mundiais para uma história em que endividados disputam um prêmio até a morte, sob os olhares de bilionários ocultos. Confronte-se o enredo com a vida real e não aparece nada de novo para quem já curte as emoções do capitalismo lotérico.

O passeio do americano é marketing do mix de astronáutica com entretenimento. Do lado russo, o cineasta Klim Shipenko passou 12 dias numa estação espacial, rodando um filme. Em sentido amplo, tudo é game. Algo bem diferente da corrida espacial em seus começos, quando duas potências mundiais disputavam promessas grandiosas em termos de benefícios humanos. John Glenn, o primeiro a orbitar, não tinha nada a ver com ócio turístico.

Para o grande público, sobrou o espetáculo do "metaverso", como se vem chamando a fusão entre games e existência, por enquanto apenas aposta tecnológica e sonho de marketing. Mas já deixa de ser mera hipótese acadêmica a vigência de uma forma paralela de vida, em que os fatores humanos são refeitos por plutocracia financeira e inteligência artificial.

Aos mais avisados, sobra a urgência de se ponderar sobre as perversões das grandes promessas.

Transferidas da órbita pública para a órbita privada da indústria e comércio, logo tornam evidente o jogo de indiferença às condições reais de vida na Terra.

Dinheiro esbanjado no espaço (ou entesourado em buracos negros fiscais) é uma ofensa à dignidade dos esfomeados em ascensão. Se tudo vira game de bilionários, periga acabarmos como o capitão Kirk, vendo só escuridão, mas aqui mesmo, no mundo tornado cada vez mais estranho por velhas formas de vida.


Texto de Muniz Sodré na Folha de São Paulo

Onda de violência leva a recorde de assassinatos de árabes-israelenses


Amro Abu Jabareen, 26, dá marcha a ré em um beco sem saída em meio a tiros de fuzil. Acaba batendo em um carro e sai correndo, a pé. Outro veículo o persegue e ouvem-se mais rajadas.

As imagens de uma câmera de segurança da cidade israelense de Umm Al-Fahm, que parecem tiradas de um filme de ação, não mostram o momento exato do homicídio, mas Jabareen entrou para a estatística.

Ele se tornou o morto de número 104, desde janeiro deste ano, entre a minoria árabe de Israel. O assassinato aconteceu às 6h (horário local) do último dia 20, um dia depois de outro homicídio na mesma cidade, o de Khalil Ja’u, 25, baleado ao sair de casa para trabalhar.

Com esses números, 2021 caminha para se tornar o ano mais sangrento de uma onda de homicídios violentos entre a minoria árabe-israelense, que começou há pelo menos cinco anos.

Dados compilados pelo jornal Yedioth Aharonoth mostram que, em 2015, de um universo de 111 crimes desse tipo, 58 vitimaram pessoas de origem árabe (52%).

proporção seguiu em trajetória de alta até o ano passado, quando esse grupo representou 78% dos mortos em 138 homicídios violentos cometidos em Israel. Em 2021, até o dia 1º de outubro, já foram 130 crimes do gênero, com os árabes-israelenses sendo 77% das vítimas.

Não se trata, porém, de uma guerra civil entre a maioria judaica (75% da população) e a minoria árabe (21%), e tampouco há soldados ou policiais envolvidos nos ataques. Quase sempre, a violência é fruto de brigas entre famílias árabes-israelenses ou de disputas relacionadas a gangues locais, cada vez mais equipadas com armamento ilegal contrabandeado ou roubado de bases militares.

As vítimas são, em geral, criminosos conhecidos ou membros das famílias. Mas, às vezes, apenas pessoas que estavam no lugar errado, na hora errada.

"A situação é catastrófica", diz Maisam Jaljuli, ativista política e cofundadora da ONG Sikkuy (chance, em hebraico). "O que se escuta no noticiário é só a ponta do iceberg. Quantas pessoas são feridas todos os dias, quantas casas são baleadas, quantos carros são incendiados? Isso ninguém conta."

Jaljuli diz que o clima na cidade onde vive, Tira (a 30 km de Tel Aviv), é de medo. "Crianças escutam tiros todos os dias e já sabem até diferenciar se são de pistola ou de fuzil. Nossos jovens estão traumatizados."

A maioria dos árabes de Israel (cidadãos israelenses ou palestinos com autorização de residentes) vive em vilarejos próprios, em geral nas periferias ou em cidades mistas como Haifa, Acre e Jerusalém.

Para a ativista, a explosão da criminalidade é resultado da negligência dos governos israelenses em relação a esses locais, que se transformaram no que ela chama de uma espécie de "velho oeste", com gangues atuando como um poder paralelo.

Muitos pedem mais presença policial, apesar da desconfiança em relação às autoridades. Uma pesquisa do site Walla em dezembro de 2020 mostrou que só 17% dos árabes-israelenses disseram confiar na polícia e que pouco mais de 60% não se sentiam seguros.

Para os ativistas, o problema só será resolvido quando Israel encarar questões mais profundas, como a falta de investimento em infraestrutura, educação e emprego nas cidades árabes —além do preconceito.

A sensação, entre os árabes de Israel, é a de que suas vidas valem menos do que as dos judeus. A hashtag #arablivesmatter (vidas árabes importam) explodiu nas redes em setembro para expressar frustração com o desamparo e a inação da polícia local, além da aparente apatia dos judeus do país.

"[Isso é fruto de] dezenas de anos de negligência, de descaso e de medo de enfrentar o cerne do problema, além da predominante suposição de que, ‘enquanto eles matarem uns aos outros, é problema deles’", resumiu o ministro da Segurança Pública de Israel, Omer Barlev, no Twitter.

Mas ele não deixou de apontar para a liderança árabe. "Vamos colocar as cartas na mesa: não são apenas famílias criminosas, é um fenômeno generalizado liderado por extremistas que assumiram o controle das ruas árabes e que se manifesta, entre outras coisas, em armas ilegais."

Há um mês, o primeiro-ministro Naftali Bennett lançou um plano nacional para combater o fenômeno e designou um novo departamento de polícia para lidar com a questão, deslocando duas unidades da polícia de fronteira. "Quem vive em Taybe [cidade árabe] merece a mesma segurança física dos que vivem em Kfar Saba [cidade judaica]'', disse.

Na semana passada, o vice-ministro de Segurança Interna, Yoav Segalovich, apresentou mais um plano para melhorar a situação em apenas seis meses, com o uso de dissuasão e punições mais severas.

Como novo "projector" (espécie de czar) na luta contra a violência no segmento árabe-israelense, ele planeja enviar mais policiais para as cidades árabes e, paralelamente, monitorar o fluxo de dinheiro das gangues e clãs envolvidos.

"Quero fazer algo rápido, uma operação governamental envolvendo vários ministérios e órgãos", explicou Segalovich, um ex-policial que chefiou a Divisão de Investigações e Inteligência da Polícia, à rádio Kan Bet.

"Não ignoro que o nível de confiança dos cidadãos nas instituições é baixo, mas temos que encontrar soluções. As pessoas estão morrendo."

Uma das medidas já aprovadas é a liberação de mandados de busca e apreensão sem necessidade de autorização judicial em casos de "suspeita razoável" de porte de armas ilegais, o que gerou críticas de grupos de defesa dos direitos humanos.

"A decisão indica tratar os cidadãos árabes como ameaças à segurança do país, com tratamento hostil e desigual", afirmou, em comunicado, a ONG Adalah. "Continua a tendência de tratá-los como inimigos estrangeiros."

O Exército não estará envolvido, já que apenas lida com perigos além das fronteiras. Mas a Agência de Segurança de Israel (também conhecida como Shabak ou Shin Bet) poderá compor a operação se acionada —com métodos usados no conflito com os palestinos, que envolvem, entre outros, interrogatórios mais duros e alistamento de informantes.

Para o parlamentar Esawi Frej, do partido de esquerda Meretz, a situação é grave demais para esperar um tratamento profundo, que pode durar anos. "A casa está pegando fogo. A vida é mais importante do que direitos humanos neste momento", disse, em debate sobre o assunto no Knesset, o Parlamento de Israel.


Reportagem de Daniela Kresch, na Folha de São Paulo

Maconha, pipa e Kalashnikov


Papelaria: até a palavra já soa a animal extinto. Papelossauro. Valocipapelor. Papelomute. Por mais quantos anos as pessoas vão precisar de grampeador, clipes, papel? Dez, 20, 30? O dono deve ter uns 60. Barrigudo, grisalho, nariz orgulhosamente pra fora da máscara, ostenta um mau humor que finge ser másculo e senhorial, mas é claramente o desespero de um condenado.

Deve ver cadafalso por todos os lados. Certamente nos funcionários. Duas garotas e um garoto de 20 e poucos, os uniformes incapazes de esconder a ponta de uma tatuagem, o tênis de skatista, as trancinhas afro. Agora é tudo assim, deve pensar o dono, tudo bagunçado, que nem naquela propaganda do Banco do Brasil que o Bolsonaro vetou.

Impossível não ver o sujeito como devoto do "mito". Ele é o extrato demográfico bolsonarista feito carne: homem branco hétero de classe média que nunca teve poder, está envelhecendo e sente saudades do tempo em que ao menos tinha gente abaixo pra chutar. Mandava na mulher, fazia piada de preto, de viado. Agora do falo só lhe resta a arminha de mão e o nariz pra fora da máscara –que vêm a ser a mesmíssima coisa.

Óbvio que ele também já me sacou. Meus óculos de aros grossos, a barba por fazer, a postura mais pra cifose do que pra crossfit atestam que estaremos em barricadas opostas no caso de uma guerra civil. No entanto, basta eu perguntar "Tem vareta?" e ele responder "É pra pipa?" para criar-se o bololô etnográfico.

Era a terceira papelaria em que eu entrava. Nas duas anteriores me olharam como se eu tivesse pedido urânio com goiabada ou um sarcófago egípcio: "Hein! Vareta?!". O dono dessa, porém, não só pergunta de bate-pronto se é pra pipa como solta, empolgado, assim que eu respondo "é": "Vareta de bambu, então. Ô, Taiane, pega lá em cima? Vai querer quantas, amigão?".

Confesso que não sei quantas, eu fazia pipa com meu pai quando era moleque, agora me esqueci e pra fazer com meu filho vou olhar no YouTube. "Que YouTube, o quê?!", ele diz, "te ensino já" e só não digo que sorriu porque o verbo não consta no seu vocabulário.

Rubem Braga também não era dado a sorrisos, penso, fazendo um esforço para enxergar na minha frente um homem diferente do que em 2026 me apontaria uma AK-47. Vejo nele o mesmo esforço. Desde que a pipa surgiu entre nós, tenta desver o esquerdoso maconheiro de antes. Talvez, imagina ele, eu só tenha comprado os óculos errados, esquecido de fazer a barba –e, se for ver bem, esses caras do MBL também andam por aí que nem esquerdoso maconheiro. Vai que?

Tento buscar no interesse dele pelas pipas uma simplicidade matuta, um lirismo interiorano. Ele tenta enxergar no meu interesse pelas pipas um apego à tradição: um homem querendo ensinar pro filho o que aprendeu com o pai, levando adiante neste mundo avacalhado a combalida tocha da masculinidade.

Taiane (a das trancinhas) traz as varetas. Sob a orientação do chefe ela me mostra os papéis, o carretel e a cola –"a cola vai de brinde", diz o sujeito. Penso naquele filme sobre a guerra da Bósnia: "Quo Vadis, Aida?". A professora encontra um ex-aluno, agora no exército inimigo. Ele a cumprimenta, "e aí, p’sora?!". Ela o chama pelo nome, manda lembranças à mãe. Ao dar tchau, chacoalhando o braço, ele balança nas costas a Kalashnikov que pode matá-la.

O dono da papelaria me ensina a fazer o tipo mais simples de pipa e mostra como cortar um saquinho de supermercado enrolado pra amarrar na rabiola. Ao me entregar de presente o tubo de cola cruzamos a vista. Entendemos, ali, que selamos uma aliança, embora nenhum dos dois saiba qual é.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Ambientalismo é consenso contra mudança climática, mas divide mais que une


Conferência do Clima em Glasgow, que começa na próxima segunda-feira, se dará sob o signo da extinção e da divisão. Da extinção de milhões de indivíduos, sejam eles animais, vegetais ou humanos.

E da divisão entre países ricos e pobres, classes dominantes e dominadas, povos cosmopolitas e autóctones, globalização e soberania. Apesar do consenso teórico de que a Terra corre perigo, a ecologia divide.

Ter consciência de uma catástrofe não a atenua. Sabe-se que 82% da riqueza mundial fica com 1% da população. E o que se faz contra isso? Nada. Não, nem isso é verdade.

A verdade é que se acelerou a concentração da renda nas mãos dos Zuckerberg, dos Gates, dos Bezos —e dos Esteves, dos Safra, das Magalu, dos Moreira Salles, dos JBS. Eles ficaram 15% mais ricos nos últimos dois anos. Num único dia, Elon Musk acrescentou US$ 36,2 bilhões à sua fortuna.

Os nababões são ambientalistas. Suas empresas fazem marketing ecológico e, queimando CO2 a bordo de jatinhos, eles se dizem horrorizados com o aquecimento do planeta, abraçam árvores, se enternecem com micos-leões dourados, tão fofos.

Eles não são apenas hipócritas. Primeiro porque a catástrofe climática permeia o ar do tempo, e quem não a reconhece está sujeito a boicotes.

A segunda razão está no recém-publicado "Abundância e Liberdade", do filósofo Pierre Charbonnier (Boitempo, 367 págs.). O livro analisa as relações entre as sociedades e a natureza, começando com
Locke e vindo até Marcuse.

Na mira da sua crítica está a ideologia do progresso, que não vê barreiras para a exploração da natureza. Para derrubá-las, seria preciso que a produtividade do trabalho, liberada da propriedade individual, ficasse de fato ilimitada. Não foi o que ocorreu e o progresso entrou em pane.

"Abundância e Liberdade" é uma crítica da esquerda. Não trata, tão somente, de constatar que o internacionalismo operário, que levaria ao socialismo, entrou em parafuso. O internacionalismo que restou, o burguês, segue a lógica do lucro, em si competitiva e destrutiva.

O livro admite que a finitude dos recursos, bem como do incremento deles por meio da tecnologia, gerou um lento apocalipse. Porque o motor da economia mundial é a expansão contínua, que leva à exaustão de solos, rios, mares, a um oceano de detritos e, por fim, ao desequilíbrio planetário.

Foi um processo histórico. Na sua aurora, a globalização foi uma parceria público-privada dos impérios europeus com a Companhia das Índias —empresa à época maior que, somadas, Amazon, Google, Microsoft, as multinacionais do petróleo, os maiores bancos e a Meta.

A dinâmica do processo era mercantil: a extração de matérias primas e produtos para o mercado europeu. Nas Américas, o sistema produtivo provocou, do norte do Canadá à Terra do Fogo, a extinção de milhões de pessoas e de milhares de espécies vegetais e animais.

Extração e extinção continuam. Lá, cá e alhures.

Lá: Charbonnier nota que a maior revolta na França desde 1968, a dos coletes amarelos, foi provocada por uma medida ecológica, o aumento da taxação dos combustíveis para diminuir a circulação de carros.

Cá: dizendo-se sensível à ecologia, o PT, em aliança com a escumalha, perpetrou Belo Monte e incrementou o pré-sal, onde dorme uma energia fóssil e imunda. A sua exploração explodiu porque a Odebrecht e similares corromperam, a fundo e a rodo, dirigentes partidários e da Petrobrás.

Alhures: em sete anos, a ditadura chinesa tirou 100 milhões de pessoas da miséria, uma velocidade sem paralelo na história. Mas acabou com o igualitarismo e criou o país mais poluente do mundo. Indiretamente, a China devasta biomas brasileiros, importando soja e carne de latifúndios onde antes floriam o cerrado e a Amazônia.

Charbonnier diz que a resistência ao cataclisma climático se dá nas comunidades que se insurgem contra a espoliação predatória. No entanto, os exemplos da resistência ao progresso são poucos e pequenos.

Ei-los: regiões zapatistas de Chiapas, no México; a ZAD, Zona a Defender, de Notre-Dame-des-Landes, na França, que impediu a construção de um aeroporto e se diz autossustentável; comunidades mantidas por indígenas da América do Sul e do Alasca.

Difícil imaginar que tais territórios possam dar origem a uma federação que sirva de alternativa ao desastre climático. Em que pese a crise da esquerda, a tomada de poder em países-chave parece mais realista. Mas os novos socialistas teriam de ser progressistas contra o progresso.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Um senhor pescoço


E o grande dia chegou. Depois de tomar as duas doses da vacina contra a Covid, marquei uma consulta presencial com meu clínico geral.

Antes do evento, fiquei um tempo escolhendo o look, depilei as coxas com Gillette e gargarejei com o Listerine mais extremo que encontrei numa gaveta com elásticos frouxos de cabelo. Dr. Ricardo é uns 20 anos mais velho, muito bem casado e gay. Não havia nenhuma intenção de flerte, mas, ainda assim, eu fiquei absurdamente nervosa apenas porque estaria frente a frente com um ser humano.

Ao ser recebida pela secretária do médico, tive que conter um impulso obtuso e desajeitado de me jogar em seus braços. Percebam: eu nem gosto dela. Trata-se de uma mulher que não atende o telefone fixo porque usa WhatsApp e não responde mensagens porque tem telefone fixo. Ainda assim, sua cara amarga tinha o perfume engulhado de uma rotina de vazio e chatice e não mais de isolamento e pavor.

Dr. Ricardo ergueu o punho para me cumprimentar com um soquinho e, antes de eu violentar sua caneta com minha lista exorbitante de pedidos de exames, passei ao menos uma hora falando sobre botas de Halloween para a minha filha, a fé no amor eterno versus um sonho insistente com 56 pessoas nuas que entendem de Hegel e minha compulsão por projetos novos versus a minha rejeição a qualquer desafio profissional já contemplado. Ele examinou alguns dos meus órgãos, empurrando-os com a mão contra a maca, disse que meu fígado estava leve e faceiro, e rimos e, MEU DEUS, como eu estava feliz.

Algumas horas depois, encontrei uma amiga para almoçar. Entre um pão italiano que me inflou a ponto de eu achar que colaria no teto do restaurante (esqueci que não posso comer glúten) e um frango enorme que parecia ter um letreiro neon dizendo "é tanto hormônio que vai nascer uma teta na sua testa" (esqueci que não como frango fora de casa), precisei enfiar meus dedos no cabelo dela, segurar uma mecha e enfiar no nariz. Ela perguntou o que eu estava fazendo, e eu… bem, eu não sabia. Depois seu marido veio buscá-la, e eu fiquei chocada com a grossura de seu pescoço. "Ele já tinha esse pescoço?". E ela: "Olha, há dez anos, até onde eu sei, é o mesmo pescoço". Era largo, forte, com veias saltadas. Era um senhor pescoço! Quando dei por mim, estava beliscando uma das veias da goela do marido da minha amiga, sob o espanto de ambos, e dizendo: "Dói?". E ele: "Não muito".

Meu analista, que por mais de um ano meu inconsciente tinha certeza de que morava dentro do Apple AirPods, se mostrou um homem com região pélvica, casa própria, bom gosto para sapatos e altura elevada. Mesmo sentado, ele continuava muito alto. Deitada no divã, passei a gritar, com medo de que minha reles neurose não alcançasse o Olimpo ostentado entre suas orelhas. Ele perguntou se eu estava nervosa. "Sim, claro, muito. Você é um ser humano, e eu não sei mais lidar com eles". "Hmmmm", ele fez. "Hmmmm", eu fiz. E pronto. Pensei como seriam nossos filhos, esquecendo por completo que prefiro dengue a outra gravidez. Declarei que abandonaria tudo por ele e fiz voz rouca e rimos e depois perguntei o que eu deveria falar, ao que ele respondeu: "O que primeiro vier à sua cabeça". E eu despejei: "Botas de Halloween para a minha filha".

Ontem recebi amigos em casa. No começo, pude ver em seus olhos o conflito de intenções tão díspares. Vontade de enfiar o dedo no ouvido esquerdo da pessoa e de perguntar se ela quer uma lambida nos pés. Vontade de falar de livros e de uivar para a lua. De me postar retinha à mesa pra comer a massa e sentar embaixo da cadeira na torcida por um pedaço de bacon. Foram embora muito rápido.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

sábado, 23 de outubro de 2021

O mundo passa, Godard fica


Não se sabe a que ponto Jean-Luc Godard se deixou abalar pela morte, recente, de Jean-Paul Belmondo. Os dois surgiram juntos em "Acossado" (1960), filme que mudou suas vidas e, talvez, o cinema. Em fevereiro último, já morrera outro nome decisivo para a aura de "Acossado": o fotógrafo de divulgação Raymond Cauchetier. Foi o autor das imagens que todos ligamos ao filme e, só agora notamos, não estão na tela. Uma delas é o beijo de Jean Seberg no rosto de Belmondo. No filme, é um beijo que mal vemos, filmado à distância, do outro lado da rua. Na foto posada de Cauchetier, é uma cena para a eternidade.

A maioria dos colegas de Godard na Nouvelle Vague morreu: François Truffaut, em 1984; Georges Franju, em 87; Jacques Démy, em 90; Louis Malle, em 95; Claude Chabrol e Éric Rohmer, em 2010; Chris Marker, em 12; Alain Resnais, em 14; Jacques Rivette e Alexandre Astruc, em 16; Agnès Varda, em 19. Para não falar de pessoas tão importantes em sua vida: Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa, em 1977; o produtor Georges de Beauregard, que o inventou como cineasta, em 84; seu fotógrafo Raoul Coutard, em 2016; Michel Légrand, em 19. E a fundamental, decisiva Jean Seberg, em 1979.

Entre suas mulheres e atrizes, Anne Wiazemsky, em 2017, e Anna Karina, em 19. Todos os críticos da revista Cahiers du Cinéma que ajudaram a construir o seu mito, assim como os dois brasileiros que mais o admiraram: Mauricio Gomes Leite, em 1993, e José Lino Grünewald, em 2000. O Cahiers também morreu várias vezes. E quem conhece Paul Gégauff, dândi e sedutor, em quem Godard baseou o Michel Poiccard de Belmondo em "Acossado"? Morreu em 1983, esfaqueado pela mulher.

Uma geração inteira se foi e Godard, aos 91, continua firme e filmando. O mundo já não lhe dá tanta atenção.

Mas Godard também nunca ligou para o mundo. Todas as causas que abraçou foram, no fundo, um abraço no cinema.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A miniadega e o mestrado


Em algum momento deste ano em que enlouqueci completamente (e muito mais do que já venho pirando nas últimas quatro décadas), eu pensei que em minha casa e em minha vida faltavam duas coisas: uma miniadega e um mestrado.

A respeito do meu comportamento instável durante a pandemia, tenho três declarações a fazer. A primeira é que comprei uma flauta. A segunda é que me apaixonei por um escritor francês gay de 24 anos e passei meses escrevendo "je t’aime" em todas as suas redes sociais. A terceira é que gastei o valor de um Corsa no site da Kalunga porque tentei virar uma espécie de artista plástica que não se leva a sério e só trabalha com material escolar.

Eu não bebo vinho, meu marido não bebe vinho, minha filha de 3 anos não bebe vinho e ficamos por quase dois anos sem receber amigos que bebem vinho. No entanto, eu sou insegura e sou distímica e sou compulsiva por adquirir (objetos, empregos, títulos, doenças) e vivo de, no sentido profissional da palavra, expor artisticamente (sic) minha deselegância, ignorância e futilidade e também de disfarçar copiosamente as mesmas três características. E, por todas essas razões e suas contradições, eu achei que a hora tinha chegado e que não dava mais para fazer de conta que tudo bem não ter uma miniadega e, porque isso é uma consequência natural e óbvia da miniadega, não dava mais para não ostentar um mestrado.

Pedro, que me chama de Tatiane e se diverte em me fotografar sentada na privada para depois fazer figurinhas com frases como "você não me leva a sério", me convenceu a trocar a ideia da miniadega por uma lava-louças. Quanto ao mestrado, apesar de ele ter entrado em meu escritório 80 vezes por mês para repetir a pergunta "você não está entendendo nada, está?", eu insisti dia após dia por pelo menos uns 20 meses até que ontem, no banho, eu me peguei respondendo sozinha: "Não! Não, eu não estou entendendo NADA".

Aqui é o momento em que eu te conto algo muito doloroso que aprendi fazendo um mestrado na USP (e era como aluna especial, nem era pra valer): você só se torna um acadêmico se você já for um acadêmico há pelo menos 20 anos.

E tem mais verdades que eu preciso me ouvir falando em voz alta: mesmo você sabendo o que querem dizer as palavras "neoliberalismo", "contingência" e "epistemologia", elas serão usadas de tantas formas complexas e múltiplas e histéricas que você esquecerá seu próprio nome.

Ah, mais um ponto importante: não interessa o quanto você estude o significado do que é hegeliano e do que é kantiano nem o que é o sujeito barrado do Lacan, na primeira vez que você levantar da cadeira, todo o sentido precisará ser revisado.

Parece piada, e eu custei a aceitar, mas não é porque você parou de ser atendida em hospital na Penha e de certa forma deu uma vencidinha marota na vida (e se emociona na sala de espera do check-up no Fleury) que vai conseguir comprar o seu status intelectual como se compra botas em butiques autorais. Eu precisaria abrir mão de todos os meus empregos e de tudo o que eu sou e de tudo o que eu fui todos esses anos para de fato ser alguém que entende alguma porra do que aquelas pessoas que fazem isso há 20, 30, 40 anos estavam falando.

Me apaixonei por uma infinidade gigantesca de homens feios e com menos dinheiro do que eu e quis sugar seus cérebros e quando Lacan diz que eu sou uma pessoa escrita pelas palavras ou assujeitada por elas ou "dita antes de me dizer" ou sei lá que cazzo ele quer de mim… eu juro que me comovo. E hoje eu queria poder nascer de novo e fazer tudo diferente e estar na USP há 20 anos e lançar um "isso é hegeliano demais" quando eu escolhesse um pão de queijo num café. Mas ontem eu me desmatriculei do meu mestrado e estou arrasada e livre.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Aumento da pobreza e da fome produz alto número de moradores de rua


Aos domingos pela manhã, costumo correr pelas ruas centrais de São Paulo. Com a cidade vazia àquela hora, o trajeto é sempre o mesmo: sigo pela Maria Antônia, Consolação, praça da República, Barão de Itapetininga, viaduto do Chá, rua Direita e praça da Sé.

Quem vê a praça da Sé de hoje, marco zero da cidade, não acredita que por ali circulavam homens de terno e gravata e mulheres com vestido e bolsa. Às 7h da manhã, a praça é um formigueiro de homens e até mulheres e crianças. Alguns dispõem do conforto de barracas do tipo iglu que garantem a eles um mínimo de proteção e privacidade, outros não têm alternativa senão acomodar-se em colchões de espuma esburacados e encardidos que alguém jogou fora ou em pedaços de papelão que um dia foram caixas. Enquanto começa a movimentação dos madrugadores, os notívagos dormem a sono solto empacotados em cobertores ordinários.

Como o hábito de passar por ali no mesmo horário é antigo, acompanho há anos o crescimento do número de moradores da praça. Posso lhes garantir, sem medo de exagerar, que pelo menos quadruplicou nos últimos dois ou três anos. Anos atrás, só havia homens, boa parte dos quais dependentes de álcool, crack ou com transtornos psiquiátricos; agora, são famílias inteiras.

Há uma semana, o jornalista Fernando Canzian comentou, nesta Folha, uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssar. Tomo a liberdade de ressaltar os seguintes dados citados no texto: "Quase 20 milhões de brasileiros, um Chile, declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer, em alguns dias. Mais 24,5 milhões não têm certeza de como se alimentarão no dia a dia e já reduziram a quantidade e a qualidade do que comem. Outros 74 milhões vivem com medo de passar por essa situação".

Não é preciso pós-graduação em matemática para concluir que 112 milhões, pouco mais da metade dos brasileiros, vive em estado de insegurança alimentar —leve, moderada ou grave. Nesse contingente, de 2014 para cá, o rendimento real per capita proveniente do trabalho caiu cerca de 30%.

No século passado, quando as secas assolavam o Nordeste, o povo do interior resistia à fome até bater o desespero, juntar a família e meia dúzia de pertences e sair pelas estradas poeirentas para buscar auxilio no povoado mais próximo. Os velhos e as crianças eram os que mais penavam, muitos ficavam pelo caminho ao lado de uma cruz de madeira.

Os bem aventurados que conseguiam chegar a São Paulo construíam barracos com teto de zinco, na periferia inchada e despreparada para recebê-los.

No internato e na residência médica no Hospital das Clínicas, meus colegas e eu recebíamos crianças desidratadas que vinham com diarreia e vômitos, resultantes da miséria, da falta de higiene e
de saneamento básico.

Nos plantões do pronto socorro de pediatria fazia parte da rotina perdermos dois ou três pacientes, num turno de 12 horas. Na enfermaria, tínhamos uma ala para desnutridos, crianças magrinhas, com as costelas à mostra, que eram internadas para tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Em contraste com elas, os desnutridos farináceos, alimentados à base de farinha, gordinhos, com os cabelos ralos e descorados como os das espigas de milho.

Essa realidade parecia ter ficado 50 anos atrás, nenhum de nós imaginava revivê-la. Ninguém esperava ver a fome assolar as cidades mais ricas do país, em pleno século 21.

Aceitamos a desigualdade social entre nós com a mesma naturalidade com que nossos antepassados conviviam com a escravidão. Eles, também, achavam que o mundo era cruel e que a economia não teria como sobreviver sem a mão de obra escrava. Envergonhada de "tanto horror perante os céus", um
dia a sociedade decretou o fim da escravidão e liberou os negros para irem atrás da sobrevivência por conta própria.

Acabar com a desigualdade brasileira por decreto não será possível, mas com a fome, sim. Um país que deixa 20 milhões de cidadãos passarem um dia inteiro sem ter o que comer não pode ser considerado civilizado.

Não é possível ver uma sociedade no estágio de desenvolvimento que atingimos de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de que governantes incompetentes como os nossos encontrem
solução para uma tragédia dessas dimensões.


Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo

terça-feira, 19 de outubro de 2021

'Luxúria', romance de estreia de Raven Leilani, é o melhor livro que li este ano


Poucas coisas me emocionam mais do que a incongruência demasiadamente humana de personagens que abusam de acidez e cinismo para pedir afeto e acolhimento. A brilhante Edie, uma jovem negra, pobre e cheia de metáforas mordazes, pensa demais sobre tudo e, sobretudo, em sexo —ainda que o ato, boa parte em parceria com homens idiotas e evasivos, lhe sirva apenas para sentir que alguém toca seu corpo.

Na mesma intensidade com a qual exibe seu potencial garotinha explicitada: “os homens perdem o interesse por mim quando abro a boca. No começo tudo sempre vai bem, depois eu falo da minha torção ovariana ou do valor do meu aluguel de um jeito explícito demais”, Edie desconstrói os clássicos tipinhos urbanos vigentes: “a dona do meu apartamento, que tem vinte e três anos, é uma influencer safada de chá detox seca-barriga no Instagram e herdou o prédio do avô”.

“Luxúria” é um livro sobre a falta de prazer, o que torna seu título ainda mais atraente. A protagonista transou, no passado, com muitos colegas do trabalho, mas nada disso foi para a frente ou lhe trouxe alguma satisfação real. Por conta da negligência e do desamparo na infância e de uma sociedade altamente deficitária e preconceituosa, ela aprendeu a gozar ao ser maltratada e abandonada, mas o vazio e a dor desse vício sobressaem a qualquer narrativa de fetiche.

No presente, Edie narra seu encantamento por Erick, um homem branco de meia-idade que conheceu na internet e que vive um relacionamento aberto com a esposa (com quem ele já até comprou “um túmulo lado a lado”). Contudo, após vários “primeiros encontros” pouco eróticos com o sujeito travado, a jovem se vê obrigada a recorrer a horas infinitas de masturbação.

A única coisa que poderia lhe trazer algum deleite ou mesmo propósito de vida é a pintura, mas ela não consegue se enxergar como artista (tenta se ver compulsivamente em autorretratos), tampouco ser reconhecida assim pelos outros: “com meio grau de diferença eu poderia ter tudo o que eu quero. Sou boa, mas não boa o bastante, e isso é pior do que ser ruim. É quase”.

A ironia do título também pode ser apreciada no quartinho em que a protagonista dorme antes de ser despejada: infestado de baratas e ratos. E também no ambiente moderninho e entojado da editora na qual trabalha até ser demitida: com pessoas que sempre deixam bem claro que ela está ali por uma questão de cota, mas isso não significa que ela será chamada para almoçar com eles.

Um dia, cansada de ter suas mensagens ignoradas por Erick, resolve aparecer na casa dele. Se vê então em meio a uma festa, ajudando Rebecca, a esposa, a levar um bolo até a mesa. A proximidade curiosa com a mulher, a obsessão amorosa, a situação financeira, a solidão atroz (não consegue estabelecer vínculo nem com outras garotas negras) e o horror de seguir ralando em subempregos, acabam fazendo com que Edie tope morar com o casal, um convite que parte somente de Rebecca, “uma mulher disposta a resolver problemas a qualquer custo, tão competente que qualquer fracasso ao seu redor se torna dela”. Quando ela conhece Akila, a filha adotiva de pais inaptos e que cresce sem nenhuma referência de pessoas negras no bairro ou na escola, fica mais claro o motivo da sua presença por ali.

Órfã de uma mãe viciada que cometeu suicídio (“Talvez as mulheres da minha família não devessem ser mães [...]. Elas estavam morrendo por dentro do próprio corpo, e agora todas essas partes mortas são a minha herança [...]”) e de um pai cujo falecimento ela descobriu pelas redes sociais, é comovente ver o modo como se desenvolve a relação entre Edie e as mulheres da nova e improvável família.

Bem, até aqui eu tentei resumir a excepcional história criada no romance de estreia desse fenômeno chamado Raven Leilani (eleito um dos melhores do ano pelo “New York Times” e pelo “The Guardian”), mas faltou dizer o mais importante: prepare a sua canetinha para grifar uma infinidade de frases definitivas sobre racismo, sobre ser mulher, ser jovem, sobre tesão, amor, angústia, solidão, engano, fragilidade e muita coragem. 


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Quem é Mahmud Darwich, poeta palestino que ganha destaque agora no Brasil


O narrador quer passar um café, mas a manhã chegou queimando com uma febre de metal. Do lado de fora, escreve, o ferro uiva enquanto Israel bombardeia Beirute. A cidade vive um inferno, naquele dia de agosto de 1982, um dos ápices da guerra civil libanesa. Ele quer passar um café.

A abertura de “Memória para o Esquecimento” impacta o leitor já nas primeiras páginas. Serve de lembrete da força do autor, Mahmud Darwich, um mestre nessa fusão entre rotina e política.

No mundo de fala árabe, Darwich dispensa introduções. Ele é o autor palestino de maior renome —e um dos símbolos de sua causa nacional. Darwich, porém, é ainda bastante desconhecido no Brasil. Em parte, porque até recentemente não havia uma tradução sistemática dele para o português.

O cenário está mudando depressa desde que a recém-fundada editora Tabla assumiu a missão de introduzir Darwich no país. No ano passado, essa casa lançou “Da Presença da Ausência”, com tradução de Marco Calil. Veio no ano seguinte “Onze Astros”, vertido por Michel Sleiman.

“Memória para o Esquecimento”, traduzido por Safa Jubran, é a terceira obra de Darwich a chegar ao Brasil num período de pouco mais de um ano. A Tabla tem planos de ir adiante, com outros volumes que ainda não foram anunciados. “O que a gente tem pelo Darwich é um fervor”, diz a editora Laura di Pietro “Ele não é um poeta de quem a gente quer fazer só um livro.”

Darwich nasceu na vila palestina Al-Birwa em 1941. Testemunhou, em 1948, a criação do Estado de Israel e a expulsão de centenas de milhares de palestinos. Por seu ativismo na Organização para a Libertação da Palestina, acabou associado à causa palestina. Morreu em 2008.

Seus poemas, como “Carteira de Identidade”, ainda tocam fundo na região. O texto repete, como um refrão, a frase “anote aí, sou um árabe”. No passado, políticos israelenses protestaram contra esses versos.

“Memória para o Esquecimento”, que acabou de sair no Brasil, narra um único dia de 1982 sob os bombardeios israelenses em Beirute, algo que Darwich viveu durante o exílio. Àquela época, Israel cercava a capital libanesa como maneira de pressionar a Organização para a Libertação da Palestina, ali presente.

O drama de passar o café em tal contexto é um exemplo do valor do prosaico na obra de Darwich. “Essa narrativa mostra que continuar com a rotina do cotidiano é um ato de resistência”, diz Jubran, professora da Universidade de São Paulo . Veterana das letras árabes, ela assina há anos algumas das principais traduções daquela língua para o português. O café aparece em outros textos de Darwich, como no poema “Para Minha Mãe”, em que ele descreve a saudade do bule materno.

Jubran afirma que “Memória para o Esquecimento” é o texto em prosa mais maduro de Darwich. É uma narrativa ímpar do cerco e dos ataques israelenses, afirma, costurada com textos bíblicos, crônicas medievais e a saga do povo palestino. O texto pode não estar em versos, mas “exala poesia”.

Outro elemento que chama a atenção, no livro, é como Darwich consegue costurar sua memória individual com aquela do coletivo palestino —um dos papéis da literatura. “Ele faz isso de maneira inédita e magistral”, Jubran afirma. “A meu ver, é um livro que mereceria um curso.”

Foi exatamente em um curso de Jubran, aliás, que Darwich cativou Calil. O tradutor de “Da Presença da Ausência” ouviu essa professora declamar em sala de aula o poema “Serás Esquecido”. “Aquilo me tomou por completo”, diz. Tomado, ele começou a traduzir o palestino. Enquanto Jubran é uma veterana, Calil é um novato. Mas, com 26 anos, esse jovem já desponta como uma das promessas de sua geração —e com um trabalho marcado por evidente erudição.

Calil parece ter menos interesse nas questões políticas e identitárias e mais nos temas históricos e literários. Fala sobre a não filosofia de Darwich, sobre como ele não resvala no que chama de “formas fracas do realismo”. “Vejo uma tensão entre o Darwich ativista e o transcendental”, afirma.

Essa tensão é importante. Há tempos, críticos reclamam de como autores de zonas marginais do mundo são reduzidos a representantes de seus povos. Até pouco tempo atrás o próprio Darwich costumava aparecer como uma voz fundamentalmente palestina, agrilhoada à causa nacional—enquanto escritores europeus são tidos como vozes universais que falam sobre a humanidade.

Na tradução de Calil, não é a identidade ou a política que se destacam —mas a língua. Ele captura de maneira excepcional as particularidades do árabe. Essa língua semítica existe em dois registros. Há o árabe formal, escrito, como o utilizado por Darwich. Há também o árabe oral, do cotidiano. É uma situação difícil de traduzir, porque o português não vive essa dualidade. A situação mais parecida é a do latim, que por algum tempo conviveu com as línguas latinas.

“No árabe, temos essa mordaça e, ao mesmo tempo, um estilhaçamento dos jeitos de dizer", diz. "Por isso, quis encontrar um português que pudesse exprimir essa remoção do tempo e da própria língua.”

MEMÓRIA PARA O ESQUECIMENTO

  • Preço R$ 63 (216 págs.)
  • Autor Mahmud Darwich
  • Editora Tabla
  • Tradução Safa Jubran


Texto de Diogo Bercito, na Folha de São Paulo.

Fui pega em flagrante por uma blitz feminista dentro da minha cabeça


Uma mulher é parada em uma blitz por um policial.

“Boa noite. Algum problema?”

“Só fiscalização de rotina. Habilitação e documento do carro, por gentileza.”

“Eu não sou obrigada.”

“Na verdade, é sim. De acordo com o artigo 238, se recusar a entregar à autoridade de trânsito os documentos de habilitação, de registro e de licenciamento de veículo é considerado uma infração gravíssima.”

“Okay, mas de acordo com os princípios básicos do feminismo, enquanto mulher não preciso me submeter às ordens de um homem.”

“Eu não posso liberar a senhora sem conferir os documentos.”

“Então é você quem decide se eu sou uma mulher livre ou não? Em que século você vive?”

“A senhora não me dá alternativa a não ser inspecionar o seu veículo. Pode abrir o porta-malas.”

“Vocês homens simplesmente não entendem o significado da palavra não. Impressionante.”

“Meu Deus. Tem um corpo aqui dentro.”

“E daí? Meu corpo, minhas regras.”

“A senhora está presa em flagrante e tem o direito de ficar calada.”

“É aí que você se engana. Mesmo soFRIDA, jamais me KAHLO.”

Peço desculpas ao leitor e principalmente às leitoras desta coluna, pois nesse ponto da história fui impedida de terminar a crônica, ao ser interceptada por uma blitz feminista. As autoridades já chegaram com o pé na porta.

“Mãos longe do teclado e documento, por favor. A mana acaba de ser pega em flagrante prestando um desserviço ao movimento. Representar uma personagem se aproveitando do discurso feminista em benefício próprio é um delito considerado grave, sob pena de apreensão da carteirinha de feminista e cancelamento perpétuo pelo tribunal do Twitter.”

“Não foi minha intenção, eu juro. Só queria explorar um recurso humorístico chamado inversão. É só uma piada. Será que isso não é excesso de patrulha?”

“O Danilo Gentili usa essa desculpa o tempo todo.”

“Olha, pode até me prender, me cancelar, mas não precisa esculachar também.”

“Não testa os limites da minha sororidade, mana, apaga logo isso ou a coisa vai ficar feia para você.”

“Tá bom. A piada do ‘meu corpo, minhas regras’ foi um pouco forçada mesmo.”

“Eu ri. Mas não conta para ninguém, pelo amor da Deusa.”​


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

CPI cumpriu o papel de detalhar como a morte virou política pública


Sentindo falta de ar, Hugo Silva encontrou forças para enviar uma mensagem: “Pai, acho que não vou conseguir”. O taxista Márcio Antônio estava no hospital, mas não podia entrar na UTI para confortar o filho. Hugo morreu em abril de 2020 aos 25 anos. “A última vez que o vi, ele estava dentro de um saco”. Três dias depois, Jair Bolsonaro diria “E daí?”.

À CPI da Covid Márcio contou nesta segunda (18) como ouviu a declaração do presidente: “Escutei no fundo do meu coração: e daí que seu filho morreu?”

Semanas depois, Márcio viu pessoas derrubando cruzes na areia de Copacabana que homenageavam os mortos. “Quando vi aquela cena, pensei: será que esse cara não vê que está pisando na cova do meu filho?”

Naqueles dias, o Brasil registrava cerca de 5.000 mortos. Hoje, são 603 mil. Bolsonaro ainda parece nem aí. No último Datafolha, 25% ainda pretendiam votar pela sua reeleição.

Também à CPI, Katia dos Santos contou que perdeu o pai e a mãe para a Covid. Ele morreu em um hospital público. Ela, em unidade da Prevent Senior, onde pacientes foram feitos de cobaias com remédios sem eficácia propagandeados pelo presidente.

A enfermeira Mayra Pires Lima perdeu um irmão e uma irmã e ficou com a guarda dos quatro sobrinhos, dois deles gêmeos que só tinham quatro meses de vida quando a mãe morreu, no início de 2021, em meio ao colapso em Manaus, para onde o governo não mandou cilindros de oxigênio a tempo.

Giovanna da Silva fez senadores chorarem ao contar que ficou órfã de pai e mãe em um intervalo de 14 dias. Aos 19 anos, assumiu a guarda da irmã, de apenas 10 anos. Como ela, são pelo menos 120 mil menores de idade que ficaram órfãos por causa da pandemia. Não sabemos se a CPI será capaz de responsabilizar os culpados, mas a comissão cumpriu o papel de detalhar como a morte virou política pública. Como disse a viúva Rosane Maria dos Santos Brandão, “a gente não elabora o luto no silêncio do esquecimento, precisamos falar e ser escutados”.


Texto de Carol Pires, na Folha de São Paulo