Entre poemas, polêmicas e manifestos, tudo que Oswald de Andrade escreveu pós-Semana de Arte Moderna tem sido apaixonadamente estudado. Talvez se devesse fazer o mesmo com o que Oswald escreveu antes. Caiu-me às mãos este seu artigo assinado, publicado em O Pirralho, tabloide que ele dirigia, de 26/12/1914. Trata do americano Jack Johnson, primeiro boxeur negro campeão mundial dos pesados e que, de 1908 a 1915, demoliu todos os seus desafiantes brancos. Eis alguns trechos:
“Passou pelos nossos portos em demanda da metrópole do Sul o negro Jack Johnson, campeão mundial de boxe. E passou de primeira classe, num luxo inútil de cabines reservadas, com criados europeus e mulher branca. Jack Johnson é hoje o sugestivo semideus da brutalidade, acrescido de valor porque, às excelências dos mais façanhudos atletas, junta o colorido animalesco do negro.
“Aos aplausos, os seus músculos faciais se estorcem num esforço de vitória sobre a atávica animalidade, abre-se-lhe a horrenda boca desdentada e Johnson ri-se. Às vaias, sobem-lhe do fundo da alma rudimentar ímpetos assassinos que se partem de encontro à sua velha covardia de negro. E, de par com as admirações, surgiram os amores —histéricas, ninfomaníacas, extravagantes de toda espécie enxergam nele o homem primitivo, toda a lenda do animal tosco da idade da pedra e sobre ele se atiram na furiosa raiva do seu gozo insatisfeito.
“Desordenado e inferior, ele envereda pelo caminho torpemente humano da ambição sem freio nem medida, do desejo ruim de todas as vantagens —processam-no como explorador de mulheres. Ele, porém, se reabilita para estetas e filósofos —tem a grandeza de chorar publicamente, monstro que é, inacabado na própria imperfeição. Salva-o, para o grande público, a rijeza permanente dos seus músculos de gorila”.
O artigo não para aqui. Johnson perdeu para um branco três meses depois. Oswald deve ter ficado contente.
Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário