terça-feira, 19 de outubro de 2021

Fui pega em flagrante por uma blitz feminista dentro da minha cabeça


Uma mulher é parada em uma blitz por um policial.

“Boa noite. Algum problema?”

“Só fiscalização de rotina. Habilitação e documento do carro, por gentileza.”

“Eu não sou obrigada.”

“Na verdade, é sim. De acordo com o artigo 238, se recusar a entregar à autoridade de trânsito os documentos de habilitação, de registro e de licenciamento de veículo é considerado uma infração gravíssima.”

“Okay, mas de acordo com os princípios básicos do feminismo, enquanto mulher não preciso me submeter às ordens de um homem.”

“Eu não posso liberar a senhora sem conferir os documentos.”

“Então é você quem decide se eu sou uma mulher livre ou não? Em que século você vive?”

“A senhora não me dá alternativa a não ser inspecionar o seu veículo. Pode abrir o porta-malas.”

“Vocês homens simplesmente não entendem o significado da palavra não. Impressionante.”

“Meu Deus. Tem um corpo aqui dentro.”

“E daí? Meu corpo, minhas regras.”

“A senhora está presa em flagrante e tem o direito de ficar calada.”

“É aí que você se engana. Mesmo soFRIDA, jamais me KAHLO.”

Peço desculpas ao leitor e principalmente às leitoras desta coluna, pois nesse ponto da história fui impedida de terminar a crônica, ao ser interceptada por uma blitz feminista. As autoridades já chegaram com o pé na porta.

“Mãos longe do teclado e documento, por favor. A mana acaba de ser pega em flagrante prestando um desserviço ao movimento. Representar uma personagem se aproveitando do discurso feminista em benefício próprio é um delito considerado grave, sob pena de apreensão da carteirinha de feminista e cancelamento perpétuo pelo tribunal do Twitter.”

“Não foi minha intenção, eu juro. Só queria explorar um recurso humorístico chamado inversão. É só uma piada. Será que isso não é excesso de patrulha?”

“O Danilo Gentili usa essa desculpa o tempo todo.”

“Olha, pode até me prender, me cancelar, mas não precisa esculachar também.”

“Não testa os limites da minha sororidade, mana, apaga logo isso ou a coisa vai ficar feia para você.”

“Tá bom. A piada do ‘meu corpo, minhas regras’ foi um pouco forçada mesmo.”

“Eu ri. Mas não conta para ninguém, pelo amor da Deusa.”​


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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