Poucas coisas me emocionam mais do que a incongruência demasiadamente humana de personagens que abusam de acidez e cinismo para pedir afeto e acolhimento. A brilhante Edie, uma jovem negra, pobre e cheia de metáforas mordazes, pensa demais sobre tudo e, sobretudo, em sexo —ainda que o ato, boa parte em parceria com homens idiotas e evasivos, lhe sirva apenas para sentir que alguém toca seu corpo.
Na mesma intensidade com a qual exibe seu potencial garotinha explicitada: “os homens perdem o interesse por mim quando abro a boca. No começo tudo sempre vai bem, depois eu falo da minha torção ovariana ou do valor do meu aluguel de um jeito explícito demais”, Edie desconstrói os clássicos tipinhos urbanos vigentes: “a dona do meu apartamento, que tem vinte e três anos, é uma influencer safada de chá detox seca-barriga no Instagram e herdou o prédio do avô”.
“Luxúria” é um livro sobre a falta de prazer, o que torna seu título ainda mais atraente. A protagonista transou, no passado, com muitos colegas do trabalho, mas nada disso foi para a frente ou lhe trouxe alguma satisfação real. Por conta da negligência e do desamparo na infância e de uma sociedade altamente deficitária e preconceituosa, ela aprendeu a gozar ao ser maltratada e abandonada, mas o vazio e a dor desse vício sobressaem a qualquer narrativa de fetiche.
No presente, Edie narra seu encantamento por Erick, um homem branco de meia-idade que conheceu na internet e que vive um relacionamento aberto com a esposa (com quem ele já até comprou “um túmulo lado a lado”). Contudo, após vários “primeiros encontros” pouco eróticos com o sujeito travado, a jovem se vê obrigada a recorrer a horas infinitas de masturbação.
A única coisa que poderia lhe trazer algum deleite ou mesmo propósito de vida é a pintura, mas ela não consegue se enxergar como artista (tenta se ver compulsivamente em autorretratos), tampouco ser reconhecida assim pelos outros: “com meio grau de diferença eu poderia ter tudo o que eu quero. Sou boa, mas não boa o bastante, e isso é pior do que ser ruim. É quase”.
A ironia do título também pode ser apreciada no quartinho em que a protagonista dorme antes de ser despejada: infestado de baratas e ratos. E também no ambiente moderninho e entojado da editora na qual trabalha até ser demitida: com pessoas que sempre deixam bem claro que ela está ali por uma questão de cota, mas isso não significa que ela será chamada para almoçar com eles.
Um dia, cansada de ter suas mensagens ignoradas por Erick, resolve aparecer na casa dele. Se vê então em meio a uma festa, ajudando Rebecca, a esposa, a levar um bolo até a mesa. A proximidade curiosa com a mulher, a obsessão amorosa, a situação financeira, a solidão atroz (não consegue estabelecer vínculo nem com outras garotas negras) e o horror de seguir ralando em subempregos, acabam fazendo com que Edie tope morar com o casal, um convite que parte somente de Rebecca, “uma mulher disposta a resolver problemas a qualquer custo, tão competente que qualquer fracasso ao seu redor se torna dela”. Quando ela conhece Akila, a filha adotiva de pais inaptos e que cresce sem nenhuma referência de pessoas negras no bairro ou na escola, fica mais claro o motivo da sua presença por ali.
Órfã de uma mãe viciada que cometeu suicídio (“Talvez as mulheres da minha família não devessem ser mães [...]. Elas estavam morrendo por dentro do próprio corpo, e agora todas essas partes mortas são a minha herança [...]”) e de um pai cujo falecimento ela descobriu pelas redes sociais, é comovente ver o modo como se desenvolve a relação entre Edie e as mulheres da nova e improvável família.
Bem, até aqui eu tentei resumir a excepcional história criada no romance de estreia desse fenômeno chamado Raven Leilani (eleito um dos melhores do ano pelo “New York Times” e pelo “The Guardian”), mas faltou dizer o mais importante: prepare a sua canetinha para grifar uma infinidade de frases definitivas sobre racismo, sobre ser mulher, ser jovem, sobre tesão, amor, angústia, solidão, engano, fragilidade e muita coragem.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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