sábado, 2 de outubro de 2021

Ética da desgraça


O que tem a ver a doação do dinheiro pela venda de um time de futebol americano profissional para entidades de caridade, a fome no Brasil e membros da equipe econômica afirmarem que Pinochet era de esquerda? Tudo, já que normas sociais e ideologia informam escolhas de políticas e a resposta do Estado a crises econômicas.

Gayle Benson, de 74 anos, é dona do New Orleans Saints, time de futebol americano, e dos Pelicans, time da NBA. Ela anunciou que após sua morte os times serão vendidos e o valor arrecadado (que deve passar de U$ 3 bilhões) será distribuído integralmente a entidades de caridade da região.

Esse não é o único exemplo de filantropia bilionária nos EUA. Em uma reunião em que estive com Sam Palmisano, antigo presidente-executivo da IBM e multimilionário, ele deixou claro que sua herança para seus filhos seria nada mais que seu sobrenome, sua agenda de contatos e a melhor educação que o dinheiro poderia comprar. Michael Bloomberg já doou U$ 8 bilhões (R$ 43 bilhões) da sua fortuna, enquanto os ativos da Fundação Bill & Melinda Gates já somam U$ 50 bilhões (R$ 269 bilhões), que deverão financiar várias iniciativas, como pesquisas nas áreas de saúde e educação.

E, apesar disso, os EUA são um dos países mais desiguais do mundo, com os maiores índices, entre os países ricos, de insegurança alimentar, falta de acesso a saúde e outros indicadores de pobreza. São 37 milhões os pobres nos EUA (11% da população). Treze milhões de famílias passaram por insegurança alimentar em algum momento do ano passado. Há fome, muita fome, no país mais rico do mundo.

Parte da razão para isso é o contrato social do país, no qual entidades filantrópicas são as principais responsáveis pelo acolhimento dos mais vulneráveis, com o Estado tendo um papel muito menor que em outros países. Pela ética protestante de muitos dos colonizadores, acumular riqueza seria algo desejável, trabalhar seria quase um dever moral, mas morrer rico seria um pecado. O problema é que, apesar de muitas boas intenções e muito trabalho sério por parte dessas entidades, no agregado isso não funciona. Entra ano e sai ano, entidades filantrópicas arrecadam 2% do PIB (Produto Interno Bruto) norte-americano, provêm o máximo de serviço que podem, mas os indicadores de pobreza não se alteram.

Vemos isso também no Brasil, onde entidades religiosas de todos os tipos enxugam gelo, fazendo o máximo que podem, mas sem ter os instrumentos para aliviar o problema no país inteiro. Afinal, é do Estado a capacidade de transferir renda diretamente para quem mais precisa.

“Não, não temos costume de deixar herança para instituições de caridade; mas é porque pagamos altos impostos para que o Estado cuide de fome e pobreza, entre outras coisas”, foi o que me disse um colega da Copenhagen Business School, na Dinamarca.

Hoje, o espectro da fome ronda milhões de famílias brasileiras. E está nas mãos do Estado a solução, que tem um nome: auxílio emergencial. Mas a equipe econômica prefere discutir se Pinochet era de esquerda (seria ele um trotskista ou stalinista?), o que é um sinal de que devem ser ainda mais duros com os mais vulneráveis, já que para eles o certo seria estar à direita do governo chileno da época.

Inflação, desemprego e fome são nosso destino manifesto. Os EUA têm sua ética protestante; aqui criamos a ética da desgraça, onde é cada um por si, com ossos e pelanca alimentando nosso corpo e discursos vazios, nossa alma. Apenas até o final de 2022, se os deuses quiserem.


Texto de Rodrigo Zeidan, na Folha de São Paulo

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