sábado, 2 de outubro de 2021

Rubem Braga e 'Breaking Bad'


“Os americanos, através do radar, entraram em contato com a Lua, o que não deixa de ser emocionante. Mas o fato mais importante da semana aconteceu com o meu pé de milho”. Assim começa um dos textos mais bonitos já escritos em língua portuguesa, “Um pé de milho”, do Rubem Braga. Reli-o esta semana pra uma aula sobre crônica e roteiro, no Sesc. Os dois gêneros são antípodas –crônica é pintura expressionista, roteiro é planta arquitetônica– e para ressaltar as diferenças, contrapus Braga à primeira sequência do piloto de "Breaking Bad". O que poderia ser mais distante do “fazendeiro do ar” do que o telúrico professor de química transformado em assassino e traficante?

O “contato com a lua” a que o cronista se refere estava na primeira página de todos os jornais na semana em que “Um pé de milho” foi escrito. Em 10 de janeiro de 1946 o “Projeto Diana” emitiu ondas de rádio em direção a nosso satélite natural e os recebeu refletidos de volta, dois segundos e meio depois, com potentes radares. Foi o início do programa espacial norte-americano.

Rubem Braga, cujo ofício era driblar os grandes acontecimentos, mirou seu radar noutra bola, infinitamente menor e mais próxima: uma semente trazida pelo acaso ao seu jardim. O enredo, por assim dizer, é ínfimo. Surge um broto. Quase morre. Um amigo diz ser capim, outro afirma ser cana. Descobre-se, depois, ser mesmo um pé de milho, que cresce e é transplantado para o canteiro diante da casa. Fim.

Ao narrar este acontecimento minúsculo, porém, Braga vai criando uma insuspeita identificação entre si e a planta. Ambos vão deixando de ser frágeis e ordinários –“Sou um ignorante, um pobre homem da cidade"-- e afirmando sua individualidade. O pé de milho crescido “não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes nunca estão imóveis. Detesto comparações surrealistas —mas na glória de seu crescimento, tal como o vi em uma noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, as crinas ao vento— e em outra madrugada parecia um galo cantando”.

Num mundo complexo e assustador, em que parecemos evaporar diante de acontecimentos astronômicos, o narrador agarra-se ao pé de milho como este finca as raízes na terra. Deixa de ser, ele também, “um número numa lavoura”. Do banal pro profundo. Do barro à vida. Metonímia “no úrtimo”. Isto é uma crônica.

Lendo a sequência inicial do roteiro de "Breaking Bad", fui reparando, surpreso, na semelhança entre Walter White e o narrador bragueano. O piloto apresenta Walter White como um “número na lavoura”, um joão ninguém, “pobre homem da cidade” que não atingiu, como a esmagadora maioria da humanidade, “a glória do seu crescimento”.

Durante a série, Walter White, para quem “a química é o estudo da mudança”, passa de oprimido a opressor. De banana a bandido. "Breaking Bad", assim como "Família Soprano", captou com seus radares o ressentimento global da classe média branca, quase vinte anos antes de Trump, Bolsonaro e companhia proporem aos joões ninguéns se empoderarem alistando-se nas lavouras do ódio e da violência.

É bonito e triste (como nas melhores crônicas do Rubem Braga) perceber que há quase oitenta anos, num sobrado em Copacabana, um obscuro cronista brasileiro ofereceu ao mundo caminho tão mais sadio para lidarmos com nossa pequenez, nosso desalento. Nunca é tarde, porém: quando todos os Walters Whites, Sopranos, Trumps e Bolsonaros sucumbirem ao próprio horror, o velho Braga seguirá firme e forte nos dando o prumo, como “um cavalo empinado, as crinas ao vento”, numa noite de luar.


Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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