sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Um senhor pescoço


E o grande dia chegou. Depois de tomar as duas doses da vacina contra a Covid, marquei uma consulta presencial com meu clínico geral.

Antes do evento, fiquei um tempo escolhendo o look, depilei as coxas com Gillette e gargarejei com o Listerine mais extremo que encontrei numa gaveta com elásticos frouxos de cabelo. Dr. Ricardo é uns 20 anos mais velho, muito bem casado e gay. Não havia nenhuma intenção de flerte, mas, ainda assim, eu fiquei absurdamente nervosa apenas porque estaria frente a frente com um ser humano.

Ao ser recebida pela secretária do médico, tive que conter um impulso obtuso e desajeitado de me jogar em seus braços. Percebam: eu nem gosto dela. Trata-se de uma mulher que não atende o telefone fixo porque usa WhatsApp e não responde mensagens porque tem telefone fixo. Ainda assim, sua cara amarga tinha o perfume engulhado de uma rotina de vazio e chatice e não mais de isolamento e pavor.

Dr. Ricardo ergueu o punho para me cumprimentar com um soquinho e, antes de eu violentar sua caneta com minha lista exorbitante de pedidos de exames, passei ao menos uma hora falando sobre botas de Halloween para a minha filha, a fé no amor eterno versus um sonho insistente com 56 pessoas nuas que entendem de Hegel e minha compulsão por projetos novos versus a minha rejeição a qualquer desafio profissional já contemplado. Ele examinou alguns dos meus órgãos, empurrando-os com a mão contra a maca, disse que meu fígado estava leve e faceiro, e rimos e, MEU DEUS, como eu estava feliz.

Algumas horas depois, encontrei uma amiga para almoçar. Entre um pão italiano que me inflou a ponto de eu achar que colaria no teto do restaurante (esqueci que não posso comer glúten) e um frango enorme que parecia ter um letreiro neon dizendo "é tanto hormônio que vai nascer uma teta na sua testa" (esqueci que não como frango fora de casa), precisei enfiar meus dedos no cabelo dela, segurar uma mecha e enfiar no nariz. Ela perguntou o que eu estava fazendo, e eu… bem, eu não sabia. Depois seu marido veio buscá-la, e eu fiquei chocada com a grossura de seu pescoço. "Ele já tinha esse pescoço?". E ela: "Olha, há dez anos, até onde eu sei, é o mesmo pescoço". Era largo, forte, com veias saltadas. Era um senhor pescoço! Quando dei por mim, estava beliscando uma das veias da goela do marido da minha amiga, sob o espanto de ambos, e dizendo: "Dói?". E ele: "Não muito".

Meu analista, que por mais de um ano meu inconsciente tinha certeza de que morava dentro do Apple AirPods, se mostrou um homem com região pélvica, casa própria, bom gosto para sapatos e altura elevada. Mesmo sentado, ele continuava muito alto. Deitada no divã, passei a gritar, com medo de que minha reles neurose não alcançasse o Olimpo ostentado entre suas orelhas. Ele perguntou se eu estava nervosa. "Sim, claro, muito. Você é um ser humano, e eu não sei mais lidar com eles". "Hmmmm", ele fez. "Hmmmm", eu fiz. E pronto. Pensei como seriam nossos filhos, esquecendo por completo que prefiro dengue a outra gravidez. Declarei que abandonaria tudo por ele e fiz voz rouca e rimos e depois perguntei o que eu deveria falar, ao que ele respondeu: "O que primeiro vier à sua cabeça". E eu despejei: "Botas de Halloween para a minha filha".

Ontem recebi amigos em casa. No começo, pude ver em seus olhos o conflito de intenções tão díspares. Vontade de enfiar o dedo no ouvido esquerdo da pessoa e de perguntar se ela quer uma lambida nos pés. Vontade de falar de livros e de uivar para a lua. De me postar retinha à mesa pra comer a massa e sentar embaixo da cadeira na torcida por um pedaço de bacon. Foram embora muito rápido.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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