domingo, 31 de outubro de 2021

Onda de violência leva a recorde de assassinatos de árabes-israelenses


Amro Abu Jabareen, 26, dá marcha a ré em um beco sem saída em meio a tiros de fuzil. Acaba batendo em um carro e sai correndo, a pé. Outro veículo o persegue e ouvem-se mais rajadas.

As imagens de uma câmera de segurança da cidade israelense de Umm Al-Fahm, que parecem tiradas de um filme de ação, não mostram o momento exato do homicídio, mas Jabareen entrou para a estatística.

Ele se tornou o morto de número 104, desde janeiro deste ano, entre a minoria árabe de Israel. O assassinato aconteceu às 6h (horário local) do último dia 20, um dia depois de outro homicídio na mesma cidade, o de Khalil Ja’u, 25, baleado ao sair de casa para trabalhar.

Com esses números, 2021 caminha para se tornar o ano mais sangrento de uma onda de homicídios violentos entre a minoria árabe-israelense, que começou há pelo menos cinco anos.

Dados compilados pelo jornal Yedioth Aharonoth mostram que, em 2015, de um universo de 111 crimes desse tipo, 58 vitimaram pessoas de origem árabe (52%).

proporção seguiu em trajetória de alta até o ano passado, quando esse grupo representou 78% dos mortos em 138 homicídios violentos cometidos em Israel. Em 2021, até o dia 1º de outubro, já foram 130 crimes do gênero, com os árabes-israelenses sendo 77% das vítimas.

Não se trata, porém, de uma guerra civil entre a maioria judaica (75% da população) e a minoria árabe (21%), e tampouco há soldados ou policiais envolvidos nos ataques. Quase sempre, a violência é fruto de brigas entre famílias árabes-israelenses ou de disputas relacionadas a gangues locais, cada vez mais equipadas com armamento ilegal contrabandeado ou roubado de bases militares.

As vítimas são, em geral, criminosos conhecidos ou membros das famílias. Mas, às vezes, apenas pessoas que estavam no lugar errado, na hora errada.

"A situação é catastrófica", diz Maisam Jaljuli, ativista política e cofundadora da ONG Sikkuy (chance, em hebraico). "O que se escuta no noticiário é só a ponta do iceberg. Quantas pessoas são feridas todos os dias, quantas casas são baleadas, quantos carros são incendiados? Isso ninguém conta."

Jaljuli diz que o clima na cidade onde vive, Tira (a 30 km de Tel Aviv), é de medo. "Crianças escutam tiros todos os dias e já sabem até diferenciar se são de pistola ou de fuzil. Nossos jovens estão traumatizados."

A maioria dos árabes de Israel (cidadãos israelenses ou palestinos com autorização de residentes) vive em vilarejos próprios, em geral nas periferias ou em cidades mistas como Haifa, Acre e Jerusalém.

Para a ativista, a explosão da criminalidade é resultado da negligência dos governos israelenses em relação a esses locais, que se transformaram no que ela chama de uma espécie de "velho oeste", com gangues atuando como um poder paralelo.

Muitos pedem mais presença policial, apesar da desconfiança em relação às autoridades. Uma pesquisa do site Walla em dezembro de 2020 mostrou que só 17% dos árabes-israelenses disseram confiar na polícia e que pouco mais de 60% não se sentiam seguros.

Para os ativistas, o problema só será resolvido quando Israel encarar questões mais profundas, como a falta de investimento em infraestrutura, educação e emprego nas cidades árabes —além do preconceito.

A sensação, entre os árabes de Israel, é a de que suas vidas valem menos do que as dos judeus. A hashtag #arablivesmatter (vidas árabes importam) explodiu nas redes em setembro para expressar frustração com o desamparo e a inação da polícia local, além da aparente apatia dos judeus do país.

"[Isso é fruto de] dezenas de anos de negligência, de descaso e de medo de enfrentar o cerne do problema, além da predominante suposição de que, ‘enquanto eles matarem uns aos outros, é problema deles’", resumiu o ministro da Segurança Pública de Israel, Omer Barlev, no Twitter.

Mas ele não deixou de apontar para a liderança árabe. "Vamos colocar as cartas na mesa: não são apenas famílias criminosas, é um fenômeno generalizado liderado por extremistas que assumiram o controle das ruas árabes e que se manifesta, entre outras coisas, em armas ilegais."

Há um mês, o primeiro-ministro Naftali Bennett lançou um plano nacional para combater o fenômeno e designou um novo departamento de polícia para lidar com a questão, deslocando duas unidades da polícia de fronteira. "Quem vive em Taybe [cidade árabe] merece a mesma segurança física dos que vivem em Kfar Saba [cidade judaica]'', disse.

Na semana passada, o vice-ministro de Segurança Interna, Yoav Segalovich, apresentou mais um plano para melhorar a situação em apenas seis meses, com o uso de dissuasão e punições mais severas.

Como novo "projector" (espécie de czar) na luta contra a violência no segmento árabe-israelense, ele planeja enviar mais policiais para as cidades árabes e, paralelamente, monitorar o fluxo de dinheiro das gangues e clãs envolvidos.

"Quero fazer algo rápido, uma operação governamental envolvendo vários ministérios e órgãos", explicou Segalovich, um ex-policial que chefiou a Divisão de Investigações e Inteligência da Polícia, à rádio Kan Bet.

"Não ignoro que o nível de confiança dos cidadãos nas instituições é baixo, mas temos que encontrar soluções. As pessoas estão morrendo."

Uma das medidas já aprovadas é a liberação de mandados de busca e apreensão sem necessidade de autorização judicial em casos de "suspeita razoável" de porte de armas ilegais, o que gerou críticas de grupos de defesa dos direitos humanos.

"A decisão indica tratar os cidadãos árabes como ameaças à segurança do país, com tratamento hostil e desigual", afirmou, em comunicado, a ONG Adalah. "Continua a tendência de tratá-los como inimigos estrangeiros."

O Exército não estará envolvido, já que apenas lida com perigos além das fronteiras. Mas a Agência de Segurança de Israel (também conhecida como Shabak ou Shin Bet) poderá compor a operação se acionada —com métodos usados no conflito com os palestinos, que envolvem, entre outros, interrogatórios mais duros e alistamento de informantes.

Para o parlamentar Esawi Frej, do partido de esquerda Meretz, a situação é grave demais para esperar um tratamento profundo, que pode durar anos. "A casa está pegando fogo. A vida é mais importante do que direitos humanos neste momento", disse, em debate sobre o assunto no Knesset, o Parlamento de Israel.


Reportagem de Daniela Kresch, na Folha de São Paulo

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