sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Compre sapatos


Tenho uma amiga que é compulsiva. Vamos chamá-la de Joana, assim Juliana não se sente exposta.

Joana tinha cerca de 700 pares de sapatos quando a conheci. Desde aquela época, ela mora em um apartamento de 60 metros quadrados na Pompeia, o que significava que, para algum convidado entrar, antes ela precisava sair ou pedir que a pessoa se sentasse em uma poltrona de botas de camurça, aconchegasse as costas em pantufas de temática animal e esticasse os pés em um pufe improvisado com sandálias plataforma.

Mas a terapia cognitiva, essa maravilha que resolve qualquer pulsão de morte em três dias, a curou. Então, depois de doar e vender mais da metade dos seus calçados, gastou parte do dinheiro que arrecadou em plantas, vasos, cachepôs e enfeites de jardim. Eu estava com ela quando, no caixa da loja Mil Plantas, Joana parcelou R$ 9 mil em dez vezes sem juros.

Ela chegou a cogitar que não precisaria mais da mesa de jantar e da cama, uma vez que, naquela selva, o clima seria eternamente de acampamento e piquenique.

Os amigos de Joana, eu inclusa, lhe explicamos que a compulsão pelos pisantes tinha ido para a vegetação e que a terapia cognitiva (e mais umas paradas estranhíssimas que ela fazia dando batidinhas com o dedo indicador na lateral dos olhos) não tinha resolvido nada. Ela ficou admirada com nossa sensibilidade para enxergar algo tão complicado e se matriculou em uma dessas academias zen.

Encantada pelo que chamou de “meu lugar pra sempre”, Joana fazia meditação às oito da manhã, ioga às 10h30, emendava no curso de culinária vegana oferecido no local, almoçava por lá, praticava ioga com a turma da tarde, meditava com a turma da tarde e, uma vez que já estava lá mesmo, passou a assistir às aulas preparatórias noturnas para virar professora de meditação e ioga. Nas únicas sete horas diárias que passava em casa, ela aproveitava para curtir toda sorte de incensos indianos, almofadas indianas, tapetes indianos, bandeirinhas coloridas indianas e imagens de budas.

Nós, seus amigos, tentamos lhe explicar que essa fase zen era muito mais um novo vício desenfreado do que um desapego. Contudo, Joana resolveu nos ouvir somente quando, depois de cinco aulas seguidas de power ioga, precisou fazer uma cirurgia no menisco.

Então ela começou a sair com o ortopedista que a operou. Lá pelo segundo encontro, passou a chamá-lo de “a pessoa certa na hora certa”, e daí foi um pulo para o “tudo que vivi até agora foi só pra chegar aqui”. Quando me ligou chorando do banheiro, dizendo que nunca tinha passado por uma cistite tão horrível, confessou que fez sexo com o rapaz 19 vezes no feriado –e nem era prolongado. Dez dias depois da cirurgia, ainda mancando, comprou louças caras, velas, taças, toalha de mesa, menu degustação do Maní, alianças e fez o pedido. O jovem, que era até bem-intencionado, disse que não e aos poucos tomou distância.

Foi quando Joana, para nosso desespero, se viciou na fake felicidade. Seu Instagram tinha, por dia, umas 47 fotos dela curtindo a vida adoidado. Insuportavelmente plena e animada no supermercado. Loucamente entusiasmada e solar, apesar do frio e da chuva, em uma praia feiosa. Distribuindo joie de vivre em um almoço de família, abraçada ao irmão com camisa polo, topetinho militar e cara de última pessoa com quem alguém gostaria de conversar.

“Joana”, eu lhe disse, em uma noite de iluminação, “compre sapatos, Joana”. Seus olhos brilharam.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo


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