domingo, 31 de outubro de 2021

Maconha, pipa e Kalashnikov


Papelaria: até a palavra já soa a animal extinto. Papelossauro. Valocipapelor. Papelomute. Por mais quantos anos as pessoas vão precisar de grampeador, clipes, papel? Dez, 20, 30? O dono deve ter uns 60. Barrigudo, grisalho, nariz orgulhosamente pra fora da máscara, ostenta um mau humor que finge ser másculo e senhorial, mas é claramente o desespero de um condenado.

Deve ver cadafalso por todos os lados. Certamente nos funcionários. Duas garotas e um garoto de 20 e poucos, os uniformes incapazes de esconder a ponta de uma tatuagem, o tênis de skatista, as trancinhas afro. Agora é tudo assim, deve pensar o dono, tudo bagunçado, que nem naquela propaganda do Banco do Brasil que o Bolsonaro vetou.

Impossível não ver o sujeito como devoto do "mito". Ele é o extrato demográfico bolsonarista feito carne: homem branco hétero de classe média que nunca teve poder, está envelhecendo e sente saudades do tempo em que ao menos tinha gente abaixo pra chutar. Mandava na mulher, fazia piada de preto, de viado. Agora do falo só lhe resta a arminha de mão e o nariz pra fora da máscara –que vêm a ser a mesmíssima coisa.

Óbvio que ele também já me sacou. Meus óculos de aros grossos, a barba por fazer, a postura mais pra cifose do que pra crossfit atestam que estaremos em barricadas opostas no caso de uma guerra civil. No entanto, basta eu perguntar "Tem vareta?" e ele responder "É pra pipa?" para criar-se o bololô etnográfico.

Era a terceira papelaria em que eu entrava. Nas duas anteriores me olharam como se eu tivesse pedido urânio com goiabada ou um sarcófago egípcio: "Hein! Vareta?!". O dono dessa, porém, não só pergunta de bate-pronto se é pra pipa como solta, empolgado, assim que eu respondo "é": "Vareta de bambu, então. Ô, Taiane, pega lá em cima? Vai querer quantas, amigão?".

Confesso que não sei quantas, eu fazia pipa com meu pai quando era moleque, agora me esqueci e pra fazer com meu filho vou olhar no YouTube. "Que YouTube, o quê?!", ele diz, "te ensino já" e só não digo que sorriu porque o verbo não consta no seu vocabulário.

Rubem Braga também não era dado a sorrisos, penso, fazendo um esforço para enxergar na minha frente um homem diferente do que em 2026 me apontaria uma AK-47. Vejo nele o mesmo esforço. Desde que a pipa surgiu entre nós, tenta desver o esquerdoso maconheiro de antes. Talvez, imagina ele, eu só tenha comprado os óculos errados, esquecido de fazer a barba –e, se for ver bem, esses caras do MBL também andam por aí que nem esquerdoso maconheiro. Vai que?

Tento buscar no interesse dele pelas pipas uma simplicidade matuta, um lirismo interiorano. Ele tenta enxergar no meu interesse pelas pipas um apego à tradição: um homem querendo ensinar pro filho o que aprendeu com o pai, levando adiante neste mundo avacalhado a combalida tocha da masculinidade.

Taiane (a das trancinhas) traz as varetas. Sob a orientação do chefe ela me mostra os papéis, o carretel e a cola –"a cola vai de brinde", diz o sujeito. Penso naquele filme sobre a guerra da Bósnia: "Quo Vadis, Aida?". A professora encontra um ex-aluno, agora no exército inimigo. Ele a cumprimenta, "e aí, p’sora?!". Ela o chama pelo nome, manda lembranças à mãe. Ao dar tchau, chacoalhando o braço, ele balança nas costas a Kalashnikov que pode matá-la.

O dono da papelaria me ensina a fazer o tipo mais simples de pipa e mostra como cortar um saquinho de supermercado enrolado pra amarrar na rabiola. Ao me entregar de presente o tubo de cola cruzamos a vista. Entendemos, ali, que selamos uma aliança, embora nenhum dos dois saiba qual é.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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