segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Se os musicais me ensinaram uma coisa é que escapismo também ajuda a viver


A morte de Nino Castelnuovo me pegou de surpresa, feito uma dessas chuvas que começam do nada quando estamos na rua, desprevenidos. Dentre tantas notícias ruins, essa em especial me fez buscar uma marquise.

Entretanto, poucos jornais se manifestaram. Mesmo o New York Times publicou reportagem uma semana atrasado. O que, de certa forma, não me espanta. Com que senso de urgência se dá pela falta do astro obscuro de um antigo musical? E mais: quem ainda se importa? A vida está muito difícil para se ter tanta nostalgia, diriam aqueles com senso prático.

Não nasci, porém, com senso prático. E, se tem uma coisa que “Os Guarda-Chuvas do Amor” e outros musicais me ensinaram, é que escapismo também ajuda a viver.

Estrelado por Nino e Catherine Deneuve, esse clássico tinha tudo para nos provocar até certa mágoa, posto que em 1964 tirou a Palma de Ouro de duas obras-primas brasileiras —“Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Colorido demais, foi tido como profundo de menos. Mas vem cá: defina “profundidade”. Conheço uma família de intelectuais que cantarola todos os diálogos de cor.

Eu mesma passo vergonha a cada reprise, vibrando feito criança diante dessa história de amor em que ninguém fala, só canta. Cherbourg, a cidade do mecânico solfejante apaixonado pela mocinha da loja de guarda-chuvas, torna-se o Méier da minha infância.

Então recordo minha avó atendendo o telefone de disco e o deixando apoiado numa caixinha de música, que tocava acordes de espera numa versão suave e cafona do tema composto por Michel Legrand.

É preciso, sim, ter um tipo bastante específico de comprometimento com a realidade para, em pleno 2021, ser fã do gênero. No entanto, não somos poucos nesse apreço por antigos "shalalalás" em technicolor.

Excêntricos de todas as idades ainda se emocionam com gangues dançantes, noviças rebeldes e Cinderelas em Paris, balançando o pé no ritmo quando alguém na tela baila com um camundongo, uma vassoura e até mesmo no teto. Enquanto o mundo se polariza da pior maneira possível, nossa maior polêmica sempre será entre Fred Astaire e Gene Kelly.

Alguns, é verdade, entregam sua preferência em dias de toró, olhando ao redor em busca de um poste no qual seja possível rodopiar. Cantando com ou sem guarda-chuva, mas de coração leve e ridículo. Protegido dos respingos do mundo. Que sentimento glorioso! Ainda que por pouco tempo, somos felizes de novo.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

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