O livro sobre o qual escreverei hoje é um dos
mais delicados, bonitos e profundos textos de literatura
infanto-juvenil que já conheci. Por seus méritos literários e
humanísticos (que talvez sejam os mais importantes), deveria figurar
na lista de compra do MEC, entre os finalistas dos grandes prêmios,
nas vitrines das livrarias. Não vai. Possivelmente (e isso é triste
como o final da história) terá poucos e encantados leitores, alguns
elogios, como este, na internet, mas não conseguirá emergir da
enxurrada de textos juvenis publicados.
Comecemos, então, por aí. A menina que veio de
longe (2012, 82 p.) é o livro de estreia da contadora de histórias
Andréa Ilha, professora da rede municipal de Caxias do Sul e
moradora de Farroupilha, RS. Num tempo em que livros e mais livros
são escritos para vender e distrair, distrair e vender, com
histórias repletas de aventura e divertimento, A menina que veio de
longe é um livro que faz pensar. Não que as palavras sejam
difíceis; os temas é que o são. Difíceis — e complexos — como
a vida.
Mas não é por isso que A menina que veio de
longe não chegará aos tantos leitores que o amariam. E nem pela
ausência de ilustrações internas, num mercado sedento por livros
para serem vistos, não para serem lidos. O livro não vai ter o
destaque merecido porque Andréa é uma escritora iniciante aqui no
canto do Brasil; porque Andréa não faz salamaleques para a imprensa
e não assina coluna em jornal; porque Andréa é professora
municipal como tantas e trabalha muito; não é modelo, atriz, filha
de famoso ou ex-BBB. E, talvez o mais decisivo, por tudo isso o livro
foi lançado pela própria autora e não traz em sua capa um selo
capaz de negociar com as livrarias, com o governo ou com os prêmios
literários.
Sim, leitores, infelizmente em muito prêmios
escolhe-se o livro sem ir além das capas (o festejado Portugal
Telecom posso dizer que é um deles). E o governo só faz as
generosas compras para o MEC das editoras por ele cadastradas (que
além de não serem muitas, concentram-se sobremaneira no eixo
Rio-SP). Mas aquele que abrir a capa e buscar o texto de Andréa Ilha
terá uma das maiores e melhores surpresas que se pode ter no mundo
literário: descobrir uma grande história.
A história começa fiel ao título, com a
narradora saindo da cidade em que nasceu e vindo para Porto Alegre,
cidade da família da mãe. A menina, sabe-se já pela capa, e é
dito no começo, é mulata. Mas eis um dos primeiros méritos do
livro: isso é uma informação, não o tema da história. A menina é
mulata como poderia ser loira ou ruiva.
A mudança de cidade, aos poucos, se revela apenas
a ponta do iceberg, consequência de problemas maiores, não causa. E
a trama vai se tornando bem mais complexa. Logo no começo, depois de
chegarem em Porto Alegre, os pais da menina Dulce partem para tentar
a vida no Canadá, deixando a menina com muita saudade e sob cuidados
da avó. O incrível é que, aos poucos, percebemos que esses pais
não são exatamente os pais dos livros infanto-juvenis, sempre tão
íntegros e amorosos e perfeitos. Não, os pais aqui somem, não têm
tempo, têm medo, fraquezas. Os pais não são heróis, tampouco
vilões. São personagens complexos como os pais de fora dos livros.
Vejamos esse trecho em que um amigo de Dulce fala sobre sua família:
"—
Sabe o que é, Dulce? — o Vítor saiu falando, com o rosto cada vez
mais vermelho, e a voz um pouco trêmula — É que eu fui abandonado
pela minha mãe. Quando eu e os meus irmãos, quando a gente era bem
pequeno. A mãe conheceu um outro cara e foi embora com ele. Eu até
me lembro de ter visto ela saindo com ele, indo embora no carro dele.
Eu chorei muito, mas sempre fiquei esperando que ela ia voltar de
novo. Mas ela não voltou. E ficamos só com o pai. Mas o pai
trabalha tanto, tanto, que quase a gente não vê ele. É muito
chato, e eu fico triste com isso, tem dias que eu chego até a ter
saudade dele."
É esse realismo sincero e sem melodramas que
chama a atenção no livro. Não é o primeiro a fazer isso, claro,
mas o faz com leveza, profundidade. A narradora menina é obrigada a
lidar com sentimentos e problemas que passam longe de sua idade, mas
perto demais de sua casa. E de tantas casas.
Engana-se, porém, quem espera uma leitura pesada.
Andréa cria na história um espaço lúdico, um mato fantástico e
um ser em forma de cone que convivem sem dificuldades com a narrativa
realista, dando um tom de suspense e ajudando sobremaneira nas cenas
mais densas. Nesse aspecto lembra filmes como O Labirinto do Fauno ou
O Jardim Secreto.
Embora pareça paradoxal, o tom que predomina é
de pureza. Tal pureza da narrativa é bem representada, por exemplo,
na fala final de Vítor, o melhor amigo de Dulce, uma fala curta que
talvez sintetize o grande sonho que todos nós tivemos um dia, e
também nossos pais, avós, bisavós, de geração para geração:
"-
Nunca na minha vida eu vou precisar de outra pessoa. Eu tenho tu!
Quando a gente fizer quatorze anos, eu vou te pedir em namoro pra vó.
Ela vai deixar, e a gente vai namorar, e, depois, com dezoito ou
dezenove, a gente vai casar. Mas a gente só vai ter filhos bem mais
tarde, que é pra gente estudar, se curtir um montão, só os dois, e
juntar dinheiro pra ter uma vida bem legal com as crianças. E, daí,
a gente nunca, mas nunca mesmo, vai deixar os filhinhos da gente! A
gente vai ficar junto com eles, sempre junto, até eles crescerem
felizes de serem amados pelos pais bons que a gente vai ser!"
As coisas, nós sabemos, às vezes não saem como
o planejado. Mas o final do livro, para um leitor jovem, é
reconfortante. E para um adulto, aparentemente previsível. Só
aparentemente, porque esse não é o verdadeiro final, já é o
epílogo, a coda de um final trágico, porém necessário. Realista.
Nem é preciso dizer que eu quero muito estar
errado, quero muito que o livro seja descoberto e distribuído para
as tantas e tantas crianças que não têm a família perfeita dos
comerciais de TV. É possível que da mesma pena de Andréa saiam
outros e outros livros e a obra consiga o merecido destaque nessa
geleia geral que virou nossa literatura juvenil. Ou, quem sabe, que
essa resenha caia nas mãos de um editor atento e ele pelo menos abra
o livro, deixando-se cativar pela simplicidade do texto e
emocionar-se pela profundidade da trama.
O problema maior é que A menina que veio de longe
é, sem duvidas, apenas um símbolo da quantidade de belas obras
publicadas em todo o Brasil que nós sequer conhecemos, já que não
são lucrativas para as livrarias (sempre tão sedentas por
blockbusters estrangeiros). O que pode estar acontecendo é que temos
muitos bons escritores, mas talvez estejam rareando os bons
leitores.
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