quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Inspirados em ações violentas, PMs falham em UPPs e programa evolui pouco no Rio



A dificuldade de transformar mentalidades ainda é o principal entrave para a evolução do programa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), lançado no final de 2008 no Rio de Janeiro. Enquanto a ideia da polícia violenta promovida pelo filme "Tropa de Elite" segue em alta no ideário dos aspirantes ao serviço, episódios de truculência policial contra moradores vêm à tona, colocando em xeque o sucesso da empreitada. Ao mesmo tempo, mortes de policiais nas áreas pacificadas parecem mostrar que o domínio dos territórios ainda não está definido.
"O fuzil só trocou de mão", afirma o pintor Eduardo Lima, frequentador do Morro Santa Marta "desde sempre" e para quem o projeto de pacificação não implicou em mudanças reais. "Falar de segurança é mole, quero ver a segurança te proteger", completa.
Para muitos moradores das 30 comunidades ocupadas pela polícia, a principal mudança com a instalação das UPPs é a entrada de pessoas "do asfalto", inclusive estrangeiros, que se tornaram uma fonte de renda para a população em alguns locais, além da redução dos tiroteios. As ideias de "domínio" e da falta de assistência, porém, ainda prevalecem.
Em dezembro de 2012, o projeto das UPPs completou quatro anos, contados a partir da instalação da primeira unidade, justamente a do Santa Marta, em Botafogo (zona sul). Em janeiro deste ano, o projeto ganhou mais dois territórios – Jacarezinho e Manguinhos (zona norte) – que se juntaram aos seus antecessores para elevar os índices da iniciativa, que agora conta com quase 8.000 policiais e mais de 480 mil pessoas cobertas. Na última semana, durante solenidade na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), o governador Sérgio Cabral anunciou a instalação de UPPs em Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Baixada Fluminense.
O lançamento das duas últimas unidades aconteceu cerca de uma semana após um novo caso de violência policial ser noticiado. Na UPP São Carlos, inaugurada em 2011, um agente destacado para atender uma ocorrência de Lei Maria da Penha agrediu um morador. O homem teria ameaçado sua mulher com uma faca e fugiu em direção à associação de moradores com a chegada da polícia. Lá, a situação se inverteu. Foi defendido pela sogra e por outros membros da favela. O militar, por algum motivo, não se controlou. Agrediu o homem e agrediu a mulher.
Notícias de desvio de conduta são ainda recorrentes. "Tem uma questão cultural muito antiga de definição do comportamento do policial. Dentro de sua armadura simbólica, que é seu uniforme, ele acaba agindo conforme características que lembram o policial do qual os moradores têm medo", explica Doriam Borges, pesquisador do LAV (Laboratório de Análises de Violência) da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que no ano passado realizou o estudo "Os Donos do Morro", sobre o impacto das UPPs na cidade.
Questionado se o policial não deveria estar preparado para lidar com tais situações de estresse, o coronel Paulo Henrique Azevedo de Moraes, novo comandante da CPP (Coordenadoria de Polícia Pacificadora), responde rapidamente: "Quem consegue?"

Treinamento e reciclagem


Moraes chegou ao comando depois de o projeto das UPPs receber uma enxurrada de críticas. Aos 47 anos, o ex-comandante do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) espera mudar esse cenário. Seu foco, afirma, é investir na preparação do efetivo e ultrapassar o que considera seu principal desafio: manter a confiança da população.
A nomeação do ex-caveira não foi à toa. "A credibilidade que você dá ao que está sendo dito depende muito de quem  falando. Ele [o policial] tem que se sentir seguro. E, se eu falo ‘faz assim que eu faço isso há 25 anos e funciona’, é muito mais fácil dele fazer", afirma.
Moraes se refere à aplicação de novas formas de comportamento das forças que atuam nas comunidades. Segundo o manual, elas devem seguir políticas de aproximação com o público, de conversa, de cumplicidade, de prevenção da violência. O desafio é promover essa mudança.
"Uma vez perguntaram se a gente não tinha cuidado [nas operações]. Com o nível de confronto, o nível de estresse que você tem nessa atividade e o número que se tem de problemas, é porque tem muita preparação. Se você botar um cidadão comum para fazer esse tipo de atividade, você ia ter 50 ou cem [problemas] por dia", afirma.
Apesar da assertiva, a realidade ainda briga com a retórica. Em entrevista recente à "Folha de S.Paulo", o antropólogo Luiz Eduardo Soares denunciou que a capacitação do efetivo para assumir as UPPs leva apenas três meses. Às vezes, menos. De fato, isso ainda parece estar entrando nos eixos.
Ronald Carvalho, 30, trabalha na Polícia Militar há oito anos.  Depois de longa experiência em batalhões, no final de 2012 foi transferido para a UPP Adeus/Baiana (zona norte), onde atua como subcomandante. O treinamento para atuar na comunidade, porém, veio cerca de um mês depois de assumir o cargo. "É importante se especializar, entender a filosofia da polícia de proximidade", diz, tranquilo, demonstrando entender a importância da reciclagem.
Já no Santa Marta foi um pouco diferente. O tenente Gabriel Cavalcante de Lima, 23, comandante da UPP na comunidade desde abril de 2012, fez estágio em outras unidades antes de assumir seu posto e passou por aulas de polícia comunitária. "A UPP é uma conquista da comunidade", diz. Totalmente integrado ao seu espaço de trabalho, Lima é um entusiasta do projeto. "Vemos nas famílias o sentimento de gratidão, o que fortalece a confiança no nosso trabalho. Os moradores se tornam colaboradores, trazem informações".

"Quero ser do Bope"


O perfil de Lima e de Carvalho, porém, não é algo universal dentro da Polícia Militar. De acordo com um levantamento informal realizado no Centro de Formação de Praças, os jovens que ingressam no serviço querem vestir o emblema da caveira, e não o da polícia pacificadora. Alguns chegam a dizer que a UPP não é polícia de verdade. Uma constatação que assusta e que pode alimentar o desvio de conduta do efetivo, segundo o comandante Moraes.
"O policial do Bope não tem preparo para o dia a dia nas comunidades. Venderam que essa polícia da exceção, do tiro, é a polícia, mas não é. A Polícia Militar tem o seu papel profissional de prevenção, de agir antes do crime. Mas o candidato entra aqui pensando que só é polícia quem faz a repressão. Então a gente tem que transformar a cabeça dessas pessoas", diz.
Moraes reconhece que as facções criminosas estão respondendo à ação da polícia pacificadora, o que pode ser constatado nos casos de morte violenta de agentes em áreas pacificadas em 2012. A reação dos policiais para esse tipo de evento, porém, precisa ser controlada.
A primeira ação do novo comando foi intensificar a instrução básica policial, aplicando treinamentos diários, com duas horas de duração, para os agentes destacados para atuação nas UPPs. Técnicas de deslocamento, de observação e de ação estão no currículo.  O objetivo é consolidar e internalizar conceitos.
"Isso tem que durar 30 anos, tem que durar o tempo em que o policial estiver aqui, tem que ser uma coisa contínua", afirma Moraes, após ressaltar que a efetividade do trabalho do Bope é resultado de muito treinamento.

Prazo de validade


"Isso vai até quando? Até 2014? É tudo fachada", conclui Eduardo Lima, sentado em uma viela da comunidade Santa Marta. Ele diz para a reportagem esperar a chegada da chuva e ver a quantidade de sujeira que vai invadir as passagens. O cheiro de esgoto já pode ser sentido. A reclamação dos moradores parece não estar restrita à segurança, mas também à morosidade da chegada dos serviços urbanos.
O questionamento sobre a manutenção do projeto para além da Copa do Mundo, em 2014, e mesmo da Olimpíada, em 2016, é repetido por boa parcela da população carioca, dentro e fora das áreas pacificadas.
"Esse é o grande medo de todo mundo", afirma Doriam Borges, do LAV. "A UPP é uma política internacionalmente conhecida. Se em cinco anos não tiver mais investimento, vai ser um grande escândalo. Então, tendo a acreditar que isso não vai acontecer", ressalva.
O passo final do projeto, de acordo com Moraes, é diferente da extinção. Espera-se que com a transformação das comunidades a polícia pacificadora não precise mais atuar e abra espaço para uma polícia de preservação da ordem, como nos bairros que não estão controlados pelo crime organizado. Ainda não há data prevista para que isso possa acontecer.
"A tendência do cidadão é olhar para o próprio umbigo", comenta Moraes. O comandante explica que, no arranjo de criminalidade anterior, muitos moradores mantinham atividades comerciais relacionadas ao tráfico e perderam a fonte de renda. No Morro do Turano, por exemplo, ele se lembra do caso de um morador que vendia rojões para os fogueteiros do tráfico e que agora não vende mais nada. "Ele se torna refratário ao projeto", diz.
Para preencher esse vácuo, iniciativas de qualificação de moradores e ofertas de trabalho estão se multiplicando, mas, de acordo com a polícia, o mais difícil é convencer a população a aderir. O Senac, por exemplo, oferece diversos cursos de capacitação para o Complexo da Penha, onde sobram vagas.
Segundo a assessoria de imprensa das UPPs, a presença nas reuniões comunitárias da região é maciça, mas o pedido é apenas um: pagofunk. Não há demandas por escola, nem emprego. "A gente não trabalha com robô, né? Queria eu, seria uma beleza", finaliza Moraes.







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