Ameaçada pela perda de popularidade dos esportes de tiro, a indústria de armas de fogo dos EUA despejou milhões de dólares em uma campanha para colocar armas nas mãos de crianças.
A indústria está dando armas de fogo, munição e dinheiro para grupos de jovens, enfraquecendo as restrições estaduais à caça por crianças, comercializando um rifle de estilo militar para "jovens atiradores", patrocinando competições de armas semiautomáticas para jovens...
...e desenvolvendo um game que promove marcas de armamentos.
As páginas da revista "Junior Shooters" [Atiradores Mirins], patrocinada pelo setor, certa vez apresentaram uma menina de 15 anos empunhando um rifle semiautomático. O artigo elogiava o tiro ao alvo com uma Bushmaster AR-15 e incentivava os jovens a compartilhar a informação com os pais. "Quem sabe?", dizia. "Talvez você encontre uma Bushmaster AR-15 embaixo de sua árvore em uma manhã gelada de Natal!"
O esforço de marketing para jovens baseia-se em pesquisas e é realizado por grupos "sem fins lucrativos" financiados pela indústria de armas, segundo revelou o "New York Times". A campanha cresceu cerca de cinco anos atrás, quando um grande estudo pediu mais ênfase "no recrutamento e na retenção" de novos caçadores e atiradores ao alvo.
Um estudo encomendado no ano passado pela indústria de esportes de tiro sugeriu incentivar as crianças de oito a 17 anos a tornarem-se "embaixadores" que apresentassem outros jovens às armas lentamente, por brincadeiras de paintball, por exemplo.
O principal defensor dos direitos às armas, a Associação Nacional do Rifle dos EUA (NRA, na sigla em inglês), e um grupo setorial, a Fundação Nacional de Esportes de Tiro, há muito tempo batalham para expandir o acesso às armas de fogo e evitar tentativas de controle.
Os debates sobre o tiroteio fatal na cidade de Newtown, em Connecticut, e em outros lugares geralmente concentraram-se na disponibilidade de armas, na doença mental e na influência de videogames violentos.
Pouca atenção foi dada ao marketing do setor para o público jovem, com defensores afirmando que apresentar armas às crianças pode constituir um passatempo seguro e saudável e com críticos dizendo que isso promove uma cultura de armas corrosiva e perigosa.
Alguns especialistas em psiquiatria infantil dizem que incentivar a exposição dos jovens às armas, mesmo em um ambiente estruturado, com ênfase para a segurança, é procurar por problemas. O doutor Jess P. Shatkin, diretor de estudos subgraduados em saúde mental infantil e adolescente na Universidade de Nova York, disse que os jovens são naturalmente impulsivos e que seus cérebros "são construídos para assumir riscos".
"Existem muitas maneiras de ensinar uma criança a ter responsabilidade", diz o doutor Shatkin. "Não é preciso uma arma para isso."
Há décadas, a NRA incentiva programas de tiro para jovens que envolvem rifles de um único tiro, armas BB e arco. Em 2010, o incentivo financeiro para isso foi de US$ 21 milhões, quase o dobro do que em 2005.
Outras organizações apresentam as crianças a rifles e pistolas de alta potência invocando o mesmo raciocínio: que as armas de fogo podem ensinar responsabilidade, ética e cidadania. A indústria de armas faz menção a estatísticas que mostram uma maior probabilidade de se ferir sendo líder de torcida do que usando armas de fogo para diversão e esporte.
Steve Sanetti, presidente da Fundação Nacional de Esportes de Tiro, disse que deve caber aos pais decidir se e quando irão apresentar seus filhos ao tiro e que tipo de arma usar.
A sede nacional da fundação fica em Newtown, a poucos quilômetros da escola elementar Sandy Hook, onde Adam Lanza, 20, usou a Bushmaster AR-15 de sua mãe para matar 20 crianças e seis adultos em dezembro.
O orçamento de US$ 26 milhões da fundação é financiado principalmente por empresas de armas, por empresas associadas e pela feira anual da fundação, segundo sua última declaração de renda.
Os esportes de tiro e as vendas de armas tiveram uma recente recuperação, mas as estatísticas a longo prazo não são favoráveis, conforme a urbanização, o crescimento de atividades para espaços internos, como o videogame, e a mudança de costumes culturais desgastarem o interesse do consumidor. Os caçadores licenciados caíram de 7% da população americana em 1975 para menos de 5% em 2005, segundo dados federais.
Alguns estudos financiados por fundações pediram que adolescentes explorassem seus sentimentos sobre as armas e as pessoas que as usam e oferecessem estratégias para gerar uma maior aceitação das armas de fogo.
Um estudo concluiu que os interessados nesse comércio, como fabricantes, "deveriam visar crianças com menos de 12 anos".
Sanetti disse que a pesquisa foi motivada pela inevitável "tensão" que a indústria enfrenta, já que ninguém com menos de 18 anos pode comprar um rifle ou uma pistola de um comerciante licenciado ou mesmo possuir uma arma na maioria das circunstâncias. Isso significa procurar maneiras criativas e adequadas de apresentar as crianças aos esportes de tiro.
A fundação e os fabricantes de armas também apoiam a revista "Junior Shooters", sediada em Idaho. As companhias de armas muitas vezes enviam novos modelos à revista para que crianças os experimentem sob a supervisão de adultos. Pouco depois que a empresa Sturm Ruger anunciou em 2009 um rifle semiautomático leve que tinha "o visual e a sensação" de um AR-15, mas usava cartuchos mais baratos de calibre 22, a "Junior Shooters" recebeu um para fazer uma resenha.
O editor da revista, Andy Fink, disse que não há motivo legítimo pelo qual as crianças não devam aprender a usar um AR-15 com segurança para recreação.
"As armas são uma ferramenta, nada diferente de um carro ou de um taco de beisebol", disse Fink.
O AR-15, a versão civil dos M-16 e M-4 militares, foi comercializado agressivamente como um aperfeiçoamento de rifles de caça e de tiro. Mas sua aparição em recentes tiroteios de massa provocou pedidos de restrições mais rígidas.
Stephan Carlson, um professor de ciência ambiental da Universidade de Minnesota cuja pesquisa sobre os efeitos positivos de aprender a caçar e de praticar atividades ao ar livre foi citada pela indústria de armas, disse que "não aprovaria necessariamente" a apresentação de armas de fogo mais potentes a crianças.
"Eu entendo por que a indústria está forçando isso, mas não vejo seu valor", disse Carlson. "Acho que remonta às capacidades básicas que tentamos incutir nas crianças. Para o que as estamos preparando?"
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