segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Apaixonada por George Harrison, brasileira Regina dava presentes ao beatle


A piada dura quatro segundos. "Como se chama esse corte de cabelo aí que você usa?", indaga um repórter chato em "A Hard Day’s Night". E George Harrison responde, num timing perfeito de comédia: "Arthur".

Até aquele momento, eu não era beatlemaníaca. Depois, continuei não sendo. Apenas uma ouvinte entusiasmada da banda mais icônica que já existiu. Não nego, é claro, que ali nasceu meu crush especial pelo garoto de Liverpool que não era Lennon, nem McCartney. Porém, nada que se compare à idolatria de Regina.

Aproveitando a efeméride dos 20 anos da morte de Mr. Harrison, eu lhe telefonei para garimpar histórias. Minha curiosidade vinha de antes, quando sua filha Luiza comentou comigo: "Sabia que mamãe deu o colar que George usa num filme dos Beatles? Um dia pergunte a ela". E assim o fiz.

Tudo começou quando Regina tinha 15 anos e foi ao cinema em Copacabana. Antes da sessão, passava um curta mostrando quatro rapazolas em ritmo de iê-iê-iê. Um deles lhe chamou a atenção. "Era lindo, aparecia penteando a franjinha. Cismei que tinha de vê-lo novamente". E não deu outra: Regina pagou ingresso para assistir aos Beatles trocentas vezes, no escurinho. "Notei outras meninas, tão fãs quanto eu. Logo fizemos amizade e cada uma adotou um apelido: Elizabeth Lennon, Denise McCartney e Regina Harrison".

Elizabeth, que mais tarde seria conhecida como Lizzie Bravo e cantaria com o quarteto na música "Across the Universe", já estava de malas prontas para embarcar com Denise nessa ousada missão adolescente: ficar de tocaia na porta do estúdio Abbey Road, em Londres. Regina então foi a uma loja de souvenir para turistas, escolheu um colar com pedras brasileiras e fez a encomenda: "Levem lá para meu cabeludo favorito". George não só curtiu o recebidinho, como justamente aparece com ele no longa-metragem musical "Magical Mystery Tour" (1967).

"A partir do colar, mandei outros mimos. Inclusive um LP da Claudete Soares". E ele gostava? "Muito! Guardo seus recados agradecendo, principalmente o que enviou quando soube que operei o apêndice. E já que tocava cítara, cheguei a lhe comprar um berimbau. Depois pensei: hmmm, não vai ser muito prático enviar."

Falando em praticidade, Regina —que se tornou modelo, posando para revistas como Manchete, O Cruzeiro, Fatos & Fotos— foi à Inglaterra e teve a chance de jantar com Paul McCartney. "Só que George na época estava em Los Angeles. E se eu não podia me encontrar com ele, ia jantar com outro beatle por quê?" Prioridades.

Os anos se passaram, let it be, coisa e tal. Regina se casou não com George, mas outro guitarrista. Até que, em 1979, "o beatle quieto" veio ao Brasil assistir à Fórmula 1 e lançar um disco. "É agora ou nunca", ela pensou, despistando os seguranças do evento e dando o abraço que estava guardado há tempos. Junto com um beijo daqueles, em bom batom vermelho, que deixou sua marca no astro.

"E o que você sentiu ali na hora???", perguntei, eletrizada. "O cheiro mais maravilhoso vindo daquele cabelo!", contou Regina às gargalhadas. "Se eu fechar os olhos agora, sinto de novo aquele aroma inesquecível". A cafungada de uma vida.

Encantada pelas minúcias tão amorosas do relato de Regina, perguntei a ela se já haviam lhe entrevistado a respeito. "Ah, não. De nós todas, Lizzie era a que tinha mais história com todos os quatro". Foi a única brasileira a gravar com eles. "Sinto falta dela. Nos falávamos todos os dias". Cantora, fotógrafa e depois casada com Zé Rodrix, que a chamou de "esperança de óculos" na letra da canção "Casa no Campo", morreu em outubro deste ano. "Foi minha grande amiga. E nosso vínculo começou ali, naquele cinema, vendo os Beatles pela primeira vez."

Ternos, amalucados, quantos relatos assim ficarão inéditos em documentário? Mesmo havendo uma série tão incrível e cheia de imagens raras feito "Get Back", que acaba de ser lançada, cada fã é um fragmento único de uma história de admiração e lealdade que persiste. "All things must pass", cantava o ídolo. Só que nem tudo, George, passa. 20 anos após sua morte, veja o tanto que ficou. A paixão, as lembranças e esse perfume de nostalgia. Além do berimbau jamais enviado, até hoje ocupando a casa e o coração de Regina.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

sábado, 27 de novembro de 2021

Quem tem medo de tubarão?


Eu tinha só 5 anos quando apareceu “Tubarão”, o filme, primeiro megassucesso de Steven Spielberg e a maior bilheteria da história até ser desbancado, dois anos mais tarde, por “Star Wars”.

Claro que meus pais não me deixaram assistir ao filme na época –só fui vê-lo muito tempo depois, em versão dublada e picotada da TV aberta. Mas acabei contaminado pela febre de “Tubarão”.

Cartazes gigantes cobriam as fachadas dos cinemas da cidade –São Paulo tinha muitas salas de rua, principalmente no centro e na região da Paulista. A mesma imagem de divulgação, o tuba com os dentões à mostra, ocupava espaços enormes nas últimas páginas dos jornais.

A televisão exibia reportagens sobre o fenômeno, com toda a tecnologia do robô-tubarão e a brecha para passar algumas cenas do filme em horário nobre.

Para a geração que cresceu nos anos 1970, “Tubarão” foi um divisor de águas. O tubarão deixava de ser peixe para se tornar monstro. Uma criatura a ser temida no imenso desconhecido do oceano. Tomar banho de mar nunca voltou a ser o que era –e essa vai na conta do carma do Spielberg.

No mundo real, ataques de tubarões a banhistas são incomuns. Onde são frequentes, como em Recife, resultam da lambança perpetrada pelos humanos no ecossistema marinho.

Ubatuba, balneário paulista, registrou dois casos recentemente, ambos não-fatais.

Aí o comodoro de uma marina encenou o filme de Spielberg lá em Ubatuba: ofereceu R$ 20 de recompensa por centímetro de peixe, caso lhe trouxessem morto o tubarão responsável pelos ataques. Ou um animal “cujo porte justifique a possibilidade de ter sido o autor dos ferimentos aos banhistas”.

Em “Tubarão”, as coisas desandam de vez quando nativos e turistas se metem a caçar o bicho assassino para embolsar um prêmio em dinheiro.

Precisamos sair urgentemente desse filme.

O tubarão não é um monstro. Nós é que somos uma ameaça para a sobrevivência dos tubarões.

Porque vai tubarão na moqueca, na isca de peixe do quiosque de praia, no ensopadinho do almoço de sexta-feira. Só que aí ele muda de nome.

Funciona assim: quando o peixe come o homem, seu nome é tubarão; quando é comido pelo homem, passa a se chamar cação. Cação é a denominação comercial genérica de várias espécies de peixes cartilaginosos, basicamente tubarões e arraias.

O Brasil produz 20 mil toneladas anuais de carne de cação. E importa o mesmo tanto. São tubarões, em sua maioria, e 40% das espécies de tubarão sofrem risco de extinção devido à pesca e à degradação ambiental.

Curioso, triste e feio é que o pessoal compra tubarão sem saber o que está levando. Cerca de 70% dos consumidores não têm ideia de que cação e tubarão são a mesma coisa.

A indústria da pesca alimenta essa ignorância. O cação é vendido em postas ou picado, nunca reconhecível e jamais com as barbatanas (é a parte mais valiosa, reservada para os chineses).

Em resumo, o homem é o tubarão do tubarão. Ou: o tubarão é a moqueca do homem.


Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Onde, desgraçado?


Esses dias um homem que amei, e que provavelmente nunca percebeu, me perguntou até quando vou escrever sobre as mesmas coisas. "Vai ficar chato se o seu próximo livro tratar do mesmíssimo assunto que o primeiro, lançando há quase 20 anos."

Me lembrei dele se espreguiçando naquele dia, em uma mesa de restaurante que dava vista para uma pia com uma imagem de Buda, e dizendo: "Eu gosto daqui". Você gosta de mim? Ninguém se alonga feliz, como que renovando os contratos entre as vértebras, para um lavabo indiano. Aquela cena. Não foi nada. Mas naquele segundo eu pensei: "Eu amo esse cara". Eu amo o cumprimento milimétrico que ele faz com meio pelo de barba quando me vê em uma festa, o elogio de duas palavras que ele me concedeu uma única vez na vida e como tudo nele é contido e aviltante para o meu derramamento.

Entendo que aos 42 anos eu deveria tentar outros temas. Com essa idade, já deu tempo de violentar meu esterno enfiando à força um abacaxi e cuidar de coisas mais importantes: a educação dos mais novos, a cautela com os mais velhos, o fenecimento diário das excitações e as aplicações financeiras.

Mas como não falar de amor? Se feito Vladimir e Estragon, a miragem de um amor me tornou essa eterna (e, infelizmente, conhecida) histérica em praça pública? Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés.

Como mudar de tema? Se o fantasma do amor, ou esse repetido "não sei" que vem se fantasiando de amor todos esses anos, acenou para mim de tantas janelas e portas e ralos e mensagens de texto (e mais recentemente até de um aplicativo de paquera), e eu fui abestada e descarrilada e toda remendada ver se agora era? Agora podia ser, né? Ah, agora vai que é.

Tenho aí meus colegas escritores fazendo tudo certinho para serem traduzidos e convidados para mesas de debates "urgentes" e ganharem prêmios. Os assuntos-algoritmos que precisam estar presentes na literatura de hoje: luta de classes, luta de gêneroluta para não falar de si mesmo –ou falar apenas se for para pedir perdão. Eu os admiro e invejo, e só não digo que torço por eles porque sou uma filha da puta. Mas há aqui uma obsessiva muito antes de haver uma progressista ou uma escritora ou mesmo uma mulher. E a minha obsessão é encontrar. Onde, pelo amor de Deus? Onde, desgraçado? Eu escrevo para alcançar, dar contorno, trazer, embalar, nomear. Eu escrevo como se jogasse uma corda, uma rede, um pano. Como se mandasse um mapa, um GPS, uma reza. E eu só escrevo para isso.

Na sétima série o Felipe, que tinha crises de angústia quando o colocavam em fila, um dia tocou pandeiro na classe, e esse inferno começou. E eu tive tantos. São 30 anos de amores que duraram meses, alguns anos, uma década, geraram gastrites, casas e até vida. E nunca deixei de acordar todos os dias fazendo piada para espantar a solidão e a agonia infinitas por achar que ainda não era você. Ainda não. Eu vou saber quando for, e ainda não foi. E estou aqui, na coragem brega do assunto batido, na expectativa idiotizada pelo outro lado do cérebro, nos 10% que me restam de um romantismo que ainda dá conta de me deixar devastada como uma adolescente, no suspiro interrompido pelo refluxo, voando com asas de um origami mal dobrado, moldado na ansiedade, enquanto 80% do corpo precisa aterrar em praticidades e cinismos para que o dia chegue ao fim, com tanto medo que tremer já virou uma espécie de tique confortável, mas esperando, esperando, esperando. Não demore porque já deu o tempo, já estou pronta. Eu tenho tanta certeza. Porque, mais do que ser uma obsessiva, eu quero o que todo mundo quer.

Como não escrever sobre o amor?


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O nome do que aconteceu em São Gonçalo é chacina


Descrever a matança na voz passiva diz muito sobre a falta que nos faz uma democracia: "Oito pessoas foram encontradas mortas" em São Gonçalo (RJ), lê-se na capa da Folha na segunda (22). "Dois deles não tinham antecedentes criminais", lê-se na capa do jornal na terça (23). "Não tinha passagem pela polícia" ou "tinha", lê-se no obituário "quem são as nove vítimas" no jornal na quarta (24), como se nada mais precisasse ser dito.

Como já cantara Nina Simone sobre corpos negros pendurados como estranhas frutas em árvores de sangue, parece que nos acostumamos a naturalizar que corpos mortos brotem em geração espontânea em matagais, sejam colhidos como frutas pela população em lençóis brancos e, ao cabo, ainda lembremos --como se isso autorizasse a pena de morte-- quem possui ou não antecedentes.

Ninguém pode ser executado extrajudicialmente, não importa quem seja: ou estamos dispostos, neste jornal e na sociedade, a chamar o horror pelo nome ou desistamos do ofício de dizer a verdade ao poder.
Eis o que houve: chacina. Chacina, etimologicamente, pode ter ingressado na língua portuguesa entre os séculos 13 e 15, de "caro siccina" ou "carne seca". Moradores em São Gonçalo, na melhor reportagem deste jornal a respeito, relatam que policiais fizeram churrasco na região da chacina, mataram, torturaram e ainda roubaram dinheiro, pistolas e fuzis.

Polícia executa por vingança (no mesmo dia em que policial é morto, a chance de um civil ser morto é de 1.150%; no dia seguinte, 350%). Polícia do RJ ri da cara do STF (descumpre a decisão da corte ao não informar quase metade das operações). Polícia no RJ mata para controlar território, não para combater crime (há quatro vezes mais operações em territórios de tráfico do que de milícia). Polícia no RJ está pouco se importando com investigação imparcial (o isolamento para perícia nem foi feito).

churrasco dos policiais em São Gonçalo é a chacina que escancara as tripas do autoritarismo que ainda aplaudimos.


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

Minha infância tem gosto de gordura hidrogenada e aroma artificial de fruta


Um dos problemas de se ter crescido nos anos 1990 é que não há qualquer glamour no nosso saudosismo. Proust se lembra da sua infância ao comer uma madeleine —isso é o que dizem, que eu nunca li "Em Busca do Tempo Perdido", e nem vou ler porque já deram um spoiler. Sim, ao final, parece que ele não encontra o tal do tempo perdido.

O fato é que passei por uma experiência igualzinha à de Proust, com sua madeleine: comi uma iguaria que me proporcionou uma volta à mais tenra infância, e meus olhos se encheram de lágrimas. Infelizmente se tratava de um bolinho Ana Maria sabor baunilha. Algum dos seus ingredientes me teletransportou direto pro ano de 1992, e me pergunto se foi o propionato de cálcio, o ácido sórbico ou o acidulante ácido cítrico. De repente eu estava no pátio da escola, tomando um pescotapa, abrindo a merendeira escondido —e encontrando ali, todo amarfanhado, o consolo pra minha solidão.

Minha infância tem gosto de açúcar invertido com notas de tutti frutti e retrogosto de acidulante ácido cítrico. As cores da minha infância são o amarelo-Cheetos, o laranja-Fanta, o roxo-Grapette. Não há cheiro que me transporte pros meus seis anos com mais rapidez do que o aroma idêntico ao natural de morango —em nada idêntico, vale assinalar, ao aroma natural de morango.

Preferia mil vezes que me lembrasse da minha avó ao sentir o cheiro de um forno a lenha, mas o que traz minha avó de volta à vida é o sabor de uma Amandita, mais especificamente a textura oleosa que deixava na boca depois de deglutida, e que também atende pelo nome de gordura vegetal hidrogenada.

Lá em casa não entrava Amandita, considerada uma "porcaria" —ao contrário de nuggets e lasanha Sadia, e nunca vou entender os critérios. Minha avó não tinha essa frescura com porcaria —sua casa era o paraíso da Amandita, do biscoito maltado da vaquinha e do quase extinto Chocolícia —e a mera lembrança da palavra chocolícia acaba de umedecer meus olhos. Gostava especialmente do raro, porque muito caro, Chocookies. Lembro de pensar: quando crescer, quero ser rico, pra ter uma despensa cheia de Chocookies.

Cresci, e minha despensa só tem abacates, café e chocolate amargo. Crescer é se tornar aquilo que você mais despreza. Minha criança interior 
passaria fome em minha casa.

Mas a vantagem de se ter tido uma infância industrializada está na facilidade em encontrar sua máquina de tempo —ela está ali, à sua espera, na estante do supermercado mais próximo de você.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Me guardando pra quando o Carnaval chegar


Se tivesse que dar um palpite sobre qual foi o mantra da pandemia, diria que foi "respira fundo e vai". É o que fazemos para sobreviver a situações de crise: interromper as práticas ordinárias circunstancialmente em favor de um objetivo maior. Esse estado de suspensão ativado por nosso senso de urgência redimensiona as prioridades e nos oferece um sentido: tentar sair vivo ao final do perrengue.

A pandemia à brasileira é uma versão da crise mundial, que tem como agravante o pandemônio econômico e político criado pelo desgoverno, que nos fez sofrer muito mais do que o inevitável durante esses quase dois anos. Da higienização de cada embalagem que chegava em casa às constrangidas passeatas por medo de aglomeração, da falta de saneamento básico para lavar mãos à paramentação de segurança, das festas clandestinas às mortes por falta de oxigênio e de leito, tivemos de tudo nesse período orquestrado por um dos piores governos da história mundial.

Quem tinha dúvidas da relação inextricável entre sujeito e sociedade teve que rever seus conceitos. Nunca se discutiu tanto no Brasil as motivações inconscientes que levam os cidadãos a elegerem seus algozes e o retorno do recalcado histórico, trazendo no coletivo o que não foi elaborado em cada um de nós. Essas perguntas, no entanto, não são inéditas e não deixarão de ser feitas, pois revelam algo que insiste: exploração sistemática do desamparo existencial feita por figuras que acenam com fórmulas messiânicas e promessa de desresponsabilização.

Mas voltemos ao tempo de exceção que a pandemia/mônio nos obrigou a viver durante esses 20 meses de ameaças e infinitas contrariedades, na qual mortes e perdas irreparáveis conviveram com gestos solidários e conscientização política.

Diante disso tudo, estaríamos radiantes pelo retorno ao "normal" graças à ciência e ao controle do vírus que ela conquistou? Não é bem assim que funciona. A suspensão da vida ordinária em função do Covid mudou nossas prioridades, mas também serviu de álibi para nossas questões mais espinhosas. A vida adquiriu um sentido de urgência dado pelas circunstâncias, que nos eximiu de pensar quem somos nós flutuando na bola azul solta no espaço. Encontrar um sentido para a vida é nossa maior busca, sendo o suicídio marcado por sua perda. Não é incomum vermos sujeitos que largam o conforto dos países desenvolvidos em busca de uma vida de voluntariado no Hemisfério Sul. Alegam que o trabalho com populações carentes traz sentido a uma vida confortável, mas previsível.

Christian Dunker, com quem discuti o tema recentemente em evento da Abepar (Associação Brasileira de Escolas Particulares), lembrou do caráter eminentemente narcísico de se fechar dentro de casa, longe do olhar alheio, sem ter que negociar espaços públicos e inteiramente voltado para si.

As boas desculpas para evitar reuniões ou deslocamentos exaustivos também acabaram e são alguns dos ganhos secundários que o fim da pandemia vai eliminar. Isso significa que vivemos agora um novo período de adaptações e remanejamentos, leia-se, de exigências e estresse.

As oscilações de humor, que vão da epifania por encontrar amigos ao desânimo de não se reconhecer nas antigas práticas, são esperadas. Qualquer promessa de que se trata de um período só de alegrias seria leviana. Voltar à prática das filas, a fazer silêncio nos cinemas e shows, voltar a compartilhar o espaço público, é tudo trabalhoso. Hora de ficarmos atentos aos novos sinais de cansaço e riscos de adoecimento.

Queríamos tanto voltar, mas não há volta, há recomeço.

Carnaval, merecido, só depois.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

Homem cis branco hétero e vítima do machismo quer ser perdoado


Prezadas leitoras, peço licença para ceder o espaço da coluna, excepcionalmente nesta semana, para o relato de um amigo que tem uma mensagem muito importante para dividir conosco. Com a palavra, o Homem Desconstruído que Assistiu ao Clipe "Masculinidade" do Tiago Iorc e se Deu Conta de que Também É uma Vítima do Machismo e por Isso Devemos Perdoá-lo.

*

"Antes de mais nada, lamento por mais uma vez, no meu lugar de macho cis branco e heterossexual, silenciar uma mulher, no caso, a colunista que gentilmente cedeu este espaço para que eu pudesse me manifestar. Sou um grande entusiasta da representatividade feminina nos meios de comunicação, mas acredito que o assunto é de interesse de todes.

Gostaria de pedir desculpas por ser homem. Não foi exatamente uma escolha consciente, mas percebi tarde demais que estava usufruindo dos privilégios de um sistema opressor de gêneros no qual me situo no topo da cadeia, causando imenso sofrimento às mulheres e, principalmente, a mim mesmo.

Com tantas estatísticas aterradoras de feminicídio e violência contra a mulher, nós, homens, acabamos invisibilizados. Afirmar que, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil é uma grande injustiça. A cada 11 minutos, um homem estupra uma mulher no Brasil. Precisamos recuperar o protagonismo que nos foi tomado. Em tantos séculos de violência contra a mulher, sempre ficamos em segundo plano, apesar de sermos nós os sujeitos de ações tão lamentáveis.

‘Ela pediu’, ‘ela foi abusada sexualmente’, ‘ela mereceu’. Tudo ela, ela, ela. Ao homem que cometeu o estupro, o anonimato, o silêncio, a impunidade, a vida que segue. Sem qualquer oportunidade de refletir sobre os seus atos, falar abertamente sobre o assunto, assumir a responsabilidade, responder por seus erros, e assim mudar, evoluir, se tornar uma melhor versão de si mesmo.

Precisamos bater no peito e… Quer dizer, bater no peito feito um gorila me parece uma tentativa de afirmação típica de uma masculinidade frágil e tóxica, embora os gorilas não saibam o que isso significa. Enfim, precisamos erguer a cabeça e admitir que, sim, somos todos estupradores em potencial. É sobre isso, e está tudo bem! Nós já entendemos e pedimos desculpa. Foi mal aí."


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Estupro, uma questão cultural


A cada dia, de 822 a 1.370 mulheres são estupradas no Brasil. O dado, estarrecedor, vem de dossiê da Agência Patrícia Galvão e foi coletado pela jornalista Adriana Negreiros em seu livro "A Vida Nunca Mais Será a Mesma", recém-lançado pela Objetiva.

Negreiros já havia publicado em 2018, pela mesma editora, o excelente "Maria Bonita - Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço".

Nele, tirava a personagem-título do lugar mítico que ocupa no imaginário popular, reconstruindo sua vida e a de outras jovens, integradas ao cangaço muitas vezes pelo rapto.

"Jovens" é muito. Às vezes meninas, como Dadá, estuprada aos 12 por Corisco, tornando-se assim sua mulher —o rito sangrento sublinhando a posse expressa no pronome.

Pois um estupro é sempre um exercício de poder e posse, como o de Corisco sobre Dadá. Enquanto o ataque ao corpo de uma mulher continuar a ser visto na esfera do desejo sexual —como pretendem muitos, inclusive políticos de ontem e hoje—, a vítima continuará a ser vista como culpada, ou pela roupa, ou pela atitude.

A crueza das cenas perpetradas pelo cangaço no início do século 20 não se amenizou e se repete, bem entrado o século 21, em todo o país, como mostra Negreiros no novo livro. Difícil lê-las e dormir —ou andar na rua, ou pegar um táxi—sossegada.

Imagine então pesquisá-las e descrevê-las tendo sido você mesma violada, como foi a autora do livro, sequestrada e estuprada em 2003.

Mas também os homens deveriam sentir desassossego diante da clareza com que Negreiros demonstra que o estupro é uma questão cultural no país. O contexto social, político e legal que dá o amparo à cultura da violência não é, afinal, um problema apenas das vítimas que dela padecem.

Estamos todos imersos no caldo que permite que, no minuto ou dois que lhe custa ler este texto, mais uma mulher seja estuprada no Brasil. Seja ela quem for, como para todas as vítimas da violência sexual, a vida nunca mais será a mesma.


Texto de Francesca Angiolillo, na Folha de São Paulo

domingo, 21 de novembro de 2021

Em busca da rima


Virou uma pessoa ruim. Antigamente era delicado, aloirado, e me admirava (por pouco tempo). Hoje, não. Não sei dele. Só sei que, à distância, me acha ridícula (me disseram —porque me exponho, fico opinando sobre isso e aquilo em público, uma stripper da mídia). Ele sempre foi de discrição.

Não é amigo meu em nada, em nenhuma rede, em círculo nenhum. Obviamente me ressinto disso, semelhante a quando, na rua da minha infância em Recife, crianças brancas e loiras desafiavam as negras como nós, ofendendo: "Louro é ouro, negro é besouro".

Tamanho insulto, eu imediatamente revidava (sua lagartixa branquela, sua lesma gosmenta!, bichos frequentes nos nossos quintais), mas, na verdade, e embora arrasada, ficava com aquela rima perfeita ecoando na minha cabeça: "ouro, besouro", procurando um palavrão que ofendesse à altura. E não achava equivalente —voltava para dentro de casa derrotada. (Já me ligava na língua, na palavra, no verso em rima).

Mas voltando a ele, que virou uma pessoa ruim... Só sei dele pelo que comentam aqui e ali, esporadicamente, mas não prolongo o assunto. Não gosto de falar da minha juventude. Minha infância eu conheço; minha juventude, não.

Além do que, hoje, velha, não é nem que deseje qualquer pessoa. Muito menos ele, que virou uma pessoa ruim (para os meus parâmetros, embora todos continuem a achá-lo um anjo). Tem desse tipo de gente, que se dá bem com todo mundo e leva fama de anjo. Não é meu caso.

(Sinceramente, posso dizer: se eu fosse homem, não faria sexo com ele hoje. Se fosse mulher, também não.)

Abaixo a cabeça, só de pensar na discrição comportada dele, na falta de raiva explícita... porque era bastante delicado (exceto, talvez, quando se trata de mim —ele que criou um "bode" de mim). Existe esse tipo de gente como eu, que desperta raiva em alguns, e que leva fama de demônio, bastante injustamente (eu diria).

Injusto: "Louro é ouro, negro é besouro". Mais injusto ainda eu não ter nunca encontrado rima poderosa como essa para responder a tantos detratores.

Hoje eu não saberia mais falar com ele (se é que soube algum dia). E só faria perguntas inconvenientes, sem sentido: "Você gosta de usar ponto e vírgula? Pouca gente gosta. Mas eu gosto"—, como uma espécie de Macabéa que declarava sorrindo, ao seu boquiaberto namorado, que ela gostava de coisas inúteis como pregos e parafusos.

Macabéa, essa perfeita criação de Clarice Lispector no romance "A Hora da Estrela", é uma nordestina perdida no mundo da cidade grande, uma bruaca coitada, um buzuntão que vai arrastando sua ignorância inocente vida afora —pois ela é personagem ideal e fantasia ideal para o que sinto quando penso nesse homem do meu passado (ou nas crianças louras da minha rua).

"Buzuntão" é palavra que meu pai usava. "Você sabe o que significa?" —eu perguntaria ao homem. Outra pergunta: "Você sabe o que é ‘dente queiro’? É o mesmo que ‘dente do siso’, vocabulário do Nordeste, do meu pai também". E o antigo homem louro-ouro ia rir de novo dessa fala desconcertante, à la Macabéa.

(É verdade que desse lugar midiático nada se produz, muito menos poesia com rima boa, como a dele —somente esta ficção-crônica capenga, resultado do esforço de uma gagueira sempre latente. Nem da cara dele me lembro mais— afinal, ele não se expõe por aí em rede social).

"Acho que vou para Alberta... tenho lá uns amigos que podem me arranjar algum bico" —cantava Neil Young na nossa época, com aquela voz melancólica que sempre achei a cara dele (do louro-ouro). Então, eu iria para Alberta, aos quatro ventos que sopram solitários, que os bons tempos de delicadeza se acabaram. (Resta a brutalidade das exposições descabidas, das ofensas odiosas).

Como ele responderia, com rima, a tal ofensa? —pergunto, roendo a unha como uma Macabéa arrependida (quer dizer, não sei se Macabéa roía, de fato, as unhas). Se Macabéa roesse unha, seria por timidez, cabeça baixa, mais do que porque quisesse devorar alguma coisa. Não queria devorar coisa nenhuma, imagino. Também não teria a presença de espírito (ou de linguagem) necessária para responder aos detratores que a rejeitassem. Ela não sabia o que era justiça —muito embora prego até rime com parafuso.

Mas sou capaz, ainda hoje, de jogar na cara dele: "Se eu fosse homem, não faria sexo com você hoje. Se fosse mulher, também não". Eu nem existo para ele. Não tenho sobrenome. Não sou filha de ninguém. Fiz meu próprio nome. Sou uma stripper das redes, da imprensa ridícula. Digo o que quero, como quiser (fui gaga na infância). Acho que vou para Alberta, o clima lá é bom na primavera. Talvez lá uma coisa rime com a outra, tenha nexo e resposta.


Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

O candidato Sergio Quadros de Mello vem aí


Sergio Moro vem aí. Deu o aviso de seu regresso ao Brasil e à política na cerimônia em que assinou a ficha do Podemos e fez praça de discursar para o país, anunciando que está de volta para retomar a cruzada contra a corrupção e combater a "degeneração da vida pública" promovida pelos que colocam "interesses pessoais e partidários" acima de tudo.

Sua fala o situa na mais autêntica tradição da direita populista que, de tanto em tanto, irrompe na cena nacional, de espada em punho contra os partidos e todo o sistema político: Jânio Quadros com sua vassourinha para "varrer a bandalheira"; Fernando Collor de Mello denunciando os "marajás"; e, por último, Jair Bolsonaro esbravejando "contra tudo isso daí".

Variando em torno do mesmo tema, apresentaram-se como não políticos, embora tivessem todos longas carreiras durante as quais pularam de legenda em legenda conforme, aí sim, seus "interesses pessoais e partidários".

Foram sobretudo hábeis em explorar o desamparo dos eleitores e sua descrença em governos e siglas. A corrupção na política —que realmente existiu, existe e desnatura a democracia— tem enorme potência simbólica e apelo eleitoral. Aos olhos das gentes, escancara a imensurável distância entre as oportunidades e formas de vida das elites políticas e as do cidadão comum.

Não se conhecem medidas efetivas de qualquer espécie para combater esse grande mal da política que tenham sido tomadas pelos cruzados da fronda anticorrupção alçados ao poder. E é sintomático que, depois de tanto tempo dedicado à tarefa, Sergio Moro, nos 49 minutos de sua alocução, não tenha apresentado uma única ideia valiosa sobre o que faria caso lhe fosse dada a oportunidade de agir —a não ser retomar a controversa proposta de prisão para os condenados em segunda instância.

A retórica da antipolítica, embelezada pela denúncia da corrupção supostamente generalizada na vida pública, é boa para ganhar votos, mas inútil para criar capacidade de governar. Não por acaso foram abreviados os mandatos de Quadros e Collor, enquanto Bolsonaro permanece porque arrimado no que de pior nosso sistema político produziu.

É sintoma do desgaste do ex-capitão que venha perdendo apoio entre aqueles que, por oportunismo eleitoral em estado bruto ou rejeição ao PT, contribuíram para elegê-lo. A volta de um Moro antibolsonarista —de fala mansa e propostas frouxas— é disso a melhor prova. Mas que tenha voltado para ser mais um populista com redação própria diz muito sobre a qualidade da nova liderança de direita que o ex-juiz aspira a exercer.


Texto de Maria Hermínia Tavares, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Poesia de Caleb Femi discute racismo e guerra entre polícia e tráfico


A foto poderia ser de uma superquadra de Brasília, mas é de um conjunto habitacional azaradíssimo num bairro pobre de Londres. Claro, aquilo está longe de ser uma favela. Mas racismo policial, guerra de traficantes e pencas de adolescentes assassinados fazem parte do cotidiano dali, como em qualquer grande cidade brasileira.

Uma diferença é que, na Inglaterra, há dezenas de prêmios para escritores, e Caleb Femi, britânico nascido na Nigéria em 1990, acaba de ganhar o de melhor livro de estreia para poesia neste ano.

"Poor", ou pobre, foi editado pela Penguin, e entremeia os poemas com fotografias tiradas pelo próprio autor. Retratam a vida e o ambiente dos jovens negros do bairro de Peckham, famoso pela precariedade econômica e social de seus habitantes.

Mas o livro poderia também se chamar "Concreto". Questiona seguidamente a cegueira do urbanismo modernista, que em Londres como em outros lugares construiu mega edifícios de aparência presidiária, achando que criava soluções "humanas" para a habitação popular.

Do que é feito o concreto? O poeta responde, enumerando muitas coisas: cimento, areia, chiclete, cordão de isolamento policial, Ovomaltine derramado, água sanitária... Quais suas propriedades? Recolho duas respostas: a capacidade de resistir ao peso de um cortejo fúnebre, capacidade de absorver o som dos socos de uma mãe desesperada.

Essa ligação entre maternidade e gueto aparece ainda com maior força imagética em outro poema, onde o sangue de um adolescente assassinado escorre pelo concreto do conjunto habitacional; é como se fosse um parto, diz Femi, e a dor dessa morte é um dente podre "que tem de ser arrancado".

Quem gostaria, afinal, de ter um filho para que dali a uns 15 anos ele seja assassinado pela polícia ou por traficantes? Terrivelmente, surge a ideia de que cada mãe é uma criadora de mortos, e de mortes.

Em "A Primeira Vez em que Você Pega numa Arma", Caleb Femi descreve uma sensação de segurança e acolhimento. O cabo do revólver "era suave/ como o seio da minha mãe. Minhas gengivas/ ainda se lembravam daquela sensação/ e transmitiram para minha mão essa memória."

É assim, nessa ideia de perpétuo nascimento para a morte, que a sucessão de chefes de gangue assassinados se traduz em linguagem bíblica: Fulano, que gerou Beltrano, que gerou Sicrano...

O livro apresenta então uma sequência de retratos dos "durões", "duronas" e das vítimas da vizinhança, um pouco como as letras de milonga em que Jorge Luis Borges homenageava ironicamente os malfeitores da velha Buenos Aires.

É o caso de um tal Marlon: "quando a polícia finalmente/ pegou ele, dizem/ que tinha munição/ suficiente para dar cabo de Deus."

Em "Agricultura do Concreto", Caleb Femi conta como se faz para arar o seu território: "juntamos revólveres/ e facas/ e pedras/ e chamamos eles de ferramentas/ para trabalhar a terra."

É um mundo de ameaças, antros de crack e execuções simuladas. "Dois segundos antes do tiro", o menino a ser executado "inspira fundo um bocado de ar/ na esperança de que o ar o mate antes do que o revólver".

Em "O Negro de Schrödinger", Caleb Femi faz referência ao conhecido paradoxo da física quântica, em que se imagina um gato, preso dentro de uma caixa, sobre o qual não se pode dizer se está vivo ou morto. Nessa teoria, o "gato de Schrödinger" deve ser descrito como "vivo-morto", ou "vivorto", ou "morvivo".

Pois bem. O poeta descreve então outra caixa —a de um aparelho de TV— em que são transmitidas notícias sobre um episódio de saque e vandalismo na cidade. Aparecem imagens de um ônibus pegando fogo, de garotos usando agasalho com capuz, e de um céu "que se recusa a trazer chuva e se recusa a mostrar o sol", uma vez que "resolveu cuidar da própria vida".

Aí a televisão mostra o rosto de um jovem negro, Mark Duggan, assassinado pela polícia no conflito. "Era uma foto de mim mesmo, ainda que eu não estivesse morto", diz o poeta, e continua: "é assim que é ser negro por aqui: tipo estar morto e vivo ao mesmo tempo".

E o capuz de um agasalho parece, para ele, o botão de uma flor que vai desabrochar, em garotos "bonitos como o medo", dormindo não mais num prédio de concreto, mas em outro lugar, "verde, eternamente verde". Longa vida a Caleb Femi.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Só um cachorro e uma cabra vestindo suéteres podem afastar uma bad trip


No episódio de hoje de "Plantão Médico", nossos emergencistas se veem diante de um diagnóstico até então considerado impossível pela comunidade científica.

"A paciente deu entrada no hospital com 80 de frequência e nove por seis de P.A. Em 14 anos de emergência, nunca tinha visto um caso assim. Estávamos diante de uma overdose de maconha."

"Entendemos que o primeiro procedimento a se fazer era oferecer um copo d’água para a jovem, que estava com a boca mais seca do que o coração de um aquariano. Mas ela implorava por uma Coca-Cola. Geralmente, eu não receitaria essa substância como tratamento, mas situações extremas requerem medidas extremas."

"Tentei usar meu estetoscópio para escutar o estômago da paciente, mas ela se contorcia muito, sentindo cócegas com o contato do metal geladinho em sua barriga. Acabou se provando desnecessário, pois era possível ouvir as contrações musculares do órgão até da sala de espera. Um quadro popularmente conhecido como ‘larica monstro’."

"Um Big Mac, rápido! Alguém abre o iFood. Não vai dar tempo. Tem uma padaria na esquina, que vende aquelas pizzas dormidas no balcão, com borda recheada de catupiry. Corre!"

"Acabamos optando por um coquetel de drogas pesadas: uma mistura de macarrão instantâneo com leite condensado. Uma de nossas enfermeiras passou mal durante o procedimento e precisou ser medicada com um Plasil intravenoso. Mas nossa equipe está sempre preparada para tudo, menos para desistir."

"Vamos fazer a contagem. Quantas risadas por minuto? Calma, vai ficar tudo bem, você vai sair dessa." Foi quando a paciente se convenceu de que estava morrendo, entrando no estágio que os paramédicos mais temiam, a bad trip."

"Eu preciso de um celular, agora. Procura vídeos de filhotes de cabra de suéter. Não, cachorro não serve, tem que ser algo mais potente. Tenta amizade interespécies. Um cachorro e uma cabra. Ambos de suéter. Coloca no campo de visão dela. Ufa. O batimento cardíaco está estabilizando."

"A paciente passa bem, mas o caso ainda me intriga. Infelizmente, nós médicos nem sempre temos todas as respostas. Onde a paciente teria conseguido uma maconha tão potente? E quanto custa? Será que a fonte dela entrega em casa? E aceita Pix?"


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O cronista que namorou a morte


Verão de 1967. Seis modelos posam para o fotógrafo Paulo Garcez numa cobertura de Ipanema —Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, José Carlos Oliveira, Fernando Sabino e Rubem Braga. Apesar do calor, eles vestem terno e gravata. Mas, para sorte dos leitores, sempre escreveram como quem anda de bermuda. A prova é uma antologia que acaba de sair, "Os Sabiás da Crônica".

Na foto que ilustra a capa do livro, Carlinhos Oliveira está no centro da roda de cronistas. Hoje ele é o menos badalado da turma. Seu primeiro romance, "O Pavão Desiludido" (1972), não foi bem recebido na época e, sem reedição, continua um dos maiores segredos da literatura brasileira. É sintomático que um autor que passou a vida sendo cobrado por ser uma promessa não cumprida tenha escrito um livro tão bom e ninguém tenha notado.

Carlinhos —morto em 1986, aos 51 anos, devastado depois de beber todas— afirmava que poderia escrever um romance autobiográfico de 500 páginas começando, capítulo por capítulo, da mesma maneira: "Ontem dormi tarde, bebi muito". Com 1,58 metro e 53 quilos, andar de passarinho, inimigo do chuveiro, barbicha de clochard, usando a blusa emprestada da namorada, ele fez do flerte com a morte seu pão de cada dia.

Como cronista, tinha uma pegada mais de jornalista. Em sua coluna no Jornal do Brasil, publicada quatro vezes por semana durante 23 anos ininterruptos, tratou de política, sexo, terrorismo, cultura, cidades, violência, neuroses, drogas, juventude, preconceitos. Escritor místico e panfletário, jamais abandonou seus temas preferidos: solidão, amor, amizade, desejo, morte, religião. De vez em quando falava de literatura, geralmente para espinafrar a vaidade dos colegas.

Os 15 textos selecionados em "Os Sabiás da Crônica" são um aperitivo de seu talento. Sua grande obra, no entanto, jaz na coleção do JB, um interminável romance incompleto e fragmentário.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

Boas falsas histórias


Diz a lenda que, ao passar por Tom Jobim ao piano, Dolores Duran perguntou-lhe que beleza era aquela que ele estava tocando. "É uma canção em que estou trabalhando", disse Tom. Daí Dolores teria tirado da bolsa seu batom e escrito, de primeira, num lenço de papel: "Ah, você está vendo só/ Do jeito que eu fiquei/ E que tudo ficou...". Ok, agora tente você escrever não uma obra-prima do samba-canção, como "Por causa de você", mas qualquer coisa com batom num lenço de papel. Na vida real, Dolores escreveu a letra em casa, no maior sossego, talvez com uma Parker.

Outra história é a de que Tom e Vinicius de Moraes, bebendo num botequim em Ipanema, viram uma moça passar e ali mesmo fizeram "Garota de Ipanema". Seria assim tão fácil? Além disso, era proibido tocar violão no Veloso, como o botequim então se chamava. A moça passou mesmo por lá, mas Tom fez a música ao piano em seu apartamento e Vinicius, a letra, na casa de Lucinha Proença, sua mulher na época, em Petrópolis. Levaram um mês para terminá-la.

Também não é verdade que o violonista Baden Powell, ao receber um convite para tocar na Casa Branca, em Washington, em 1963, tivesse dito: "Não posso. Nesse dia tenho show no Zum-Zum". Imagine alguém recusar a Casa Branca pelo Zum-Zum, uma humilde boate em Copacabana —nem o desligado Baden faria isso. Para completar, os fatos não batem: os convites da Casa Branca eram feitos com meses de antecedência, e os shows do Zum-Zum, decididos de véspera.

E, embora ainda a contem, esqueça a história de que Garrincha chamava de "João" o adversário que iria marcá-lo no jogo do dia seguinte. Fora inventada por seu amigo, o jornalista Sandro Moreyra, e Garrincha a detestava porque fazia com que o jogador, para não se tornar um "João", entrasse nele para rachar.

São boas histórias, mas falsas, sem base nos fatos. Hoje as histórias falsas se passam em Brasília e não têm a menor graça.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo