Virou uma pessoa ruim. Antigamente era delicado, aloirado, e me admirava (por pouco tempo). Hoje, não. Não sei dele. Só sei que, à distância, me acha ridícula (me disseram —porque me exponho, fico opinando sobre isso e aquilo em público, uma stripper da mídia). Ele sempre foi de discrição.
Não é amigo meu em nada, em nenhuma rede, em círculo nenhum. Obviamente me ressinto disso, semelhante a quando, na rua da minha infância em Recife, crianças brancas e loiras desafiavam as negras como nós, ofendendo: "Louro é ouro, negro é besouro".
Tamanho insulto, eu imediatamente revidava (sua lagartixa branquela, sua lesma gosmenta!, bichos frequentes nos nossos quintais), mas, na verdade, e embora arrasada, ficava com aquela rima perfeita ecoando na minha cabeça: "ouro, besouro", procurando um palavrão que ofendesse à altura. E não achava equivalente —voltava para dentro de casa derrotada. (Já me ligava na língua, na palavra, no verso em rima).
Mas voltando a ele, que virou uma pessoa ruim... Só sei dele pelo que comentam aqui e ali, esporadicamente, mas não prolongo o assunto. Não gosto de falar da minha juventude. Minha infância eu conheço; minha juventude, não.
Além do que, hoje, velha, não é nem que deseje qualquer pessoa. Muito menos ele, que virou uma pessoa ruim (para os meus parâmetros, embora todos continuem a achá-lo um anjo). Tem desse tipo de gente, que se dá bem com todo mundo e leva fama de anjo. Não é meu caso.
(Sinceramente, posso dizer: se eu fosse homem, não faria sexo com ele hoje. Se fosse mulher, também não.)
Abaixo a cabeça, só de pensar na discrição comportada dele, na falta de raiva explícita... porque era bastante delicado (exceto, talvez, quando se trata de mim —ele que criou um "bode" de mim). Existe esse tipo de gente como eu, que desperta raiva em alguns, e que leva fama de demônio, bastante injustamente (eu diria).
Injusto: "Louro é ouro, negro é besouro". Mais injusto ainda eu não ter nunca encontrado rima poderosa como essa para responder a tantos detratores.
Hoje eu não saberia mais falar com ele (se é que soube algum dia). E só faria perguntas inconvenientes, sem sentido: "Você gosta de usar ponto e vírgula? Pouca gente gosta. Mas eu gosto"—, como uma espécie de Macabéa que declarava sorrindo, ao seu boquiaberto namorado, que ela gostava de coisas inúteis como pregos e parafusos.
Macabéa, essa perfeita criação de Clarice Lispector no romance "A Hora da Estrela", é uma nordestina perdida no mundo da cidade grande, uma bruaca coitada, um buzuntão que vai arrastando sua ignorância inocente vida afora —pois ela é personagem ideal e fantasia ideal para o que sinto quando penso nesse homem do meu passado (ou nas crianças louras da minha rua).
"Buzuntão" é palavra que meu pai usava. "Você sabe o que significa?" —eu perguntaria ao homem. Outra pergunta: "Você sabe o que é ‘dente queiro’? É o mesmo que ‘dente do siso’, vocabulário do Nordeste, do meu pai também". E o antigo homem louro-ouro ia rir de novo dessa fala desconcertante, à la Macabéa.
(É verdade que desse lugar midiático nada se produz, muito menos poesia com rima boa, como a dele —somente esta ficção-crônica capenga, resultado do esforço de uma gagueira sempre latente. Nem da cara dele me lembro mais— afinal, ele não se expõe por aí em rede social).
"Acho que vou para Alberta... tenho lá uns amigos que podem me arranjar algum bico" —cantava Neil Young na nossa época, com aquela voz melancólica que sempre achei a cara dele (do louro-ouro). Então, eu iria para Alberta, aos quatro ventos que sopram solitários, que os bons tempos de delicadeza se acabaram. (Resta a brutalidade das exposições descabidas, das ofensas odiosas).
Como ele responderia, com rima, a tal ofensa? —pergunto, roendo a unha como uma Macabéa arrependida (quer dizer, não sei se Macabéa roía, de fato, as unhas). Se Macabéa roesse unha, seria por timidez, cabeça baixa, mais do que porque quisesse devorar alguma coisa. Não queria devorar coisa nenhuma, imagino. Também não teria a presença de espírito (ou de linguagem) necessária para responder aos detratores que a rejeitassem. Ela não sabia o que era justiça —muito embora prego até rime com parafuso.
Mas sou capaz, ainda hoje, de jogar na cara dele: "Se eu fosse homem, não faria sexo com você hoje. Se fosse mulher, também não". Eu nem existo para ele. Não tenho sobrenome. Não sou filha de ninguém. Fiz meu próprio nome. Sou uma stripper das redes, da imprensa ridícula. Digo o que quero, como quiser (fui gaga na infância). Acho que vou para Alberta, o clima lá é bom na primavera. Talvez lá uma coisa rime com a outra, tenha nexo e resposta.
Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário