domingo, 7 de novembro de 2021

Os dois corpos de Batalha


Seu Batalha diz que tem dois corpos. Apresentou-se à consulta psiquiátrica na segunda-feira passada. Aparentava estar muito angustiado, com alguns traços de delírio, paranoia profunda e alguns tiques nervosos, como um tremelique em uma das pernas. Seu relato era o seguinte. Numa manhã de sábado, ele notou que uma pinta em sua omoplata esquerda tinha desaparecido. Tirou a roupa, olhou as costas no espelho e a pinta, que, segundo diz, tem uma pequena protuberância, não estava mais lá. Achou estranho, mas não deu muita importância a isso.

Tocou o dia para a frente e ficou surpreso por se sentir tão bem. A dor crônica que tinha nas costas havia desaparecido, ele caminhava de forma mais ereta, com mais energia. Durante o almoço, sua mulher o olhava de um modo novo e, na sesta, foi ela quem o procurou com beijos e carícias. Fizeram sexo como havia anos não faziam, com força, com desespero, com espanto mútuo. Ela o olhava nos olhos, procurava pelo olhar dele e voltava a abraçá-lo como se tivesse recuperado um namorado da juventude.

À noite ele foi tocar com sua banda no bar. Seu Batalha toca violão e garante que nunca havia conseguido tocar como nessa noite. Parecia ter uma perfeita memória física da técnica, dos ritmos, das escalas. Coisas que sempre lhe saíam com dificuldade nessa noite lhe saíram de forma fluída. Várias vezes ele repetiu a expressão: Eu era a música. Cada canção não era algo com o qual ele tinha que manter o tempo, mas era ele mesmo quem produzia esse tempo. E seus colegas de banda notaram a diferença e lhe deram os parabéns. Ele diz que nessa noite foi dormir impressionado, intrigado e com uma placidez que desapareceu por completo na manhã seguinte.

A primeira coisa que ele fez ao acordar foi procurar a pinta, e lá estava ela. Todo o peso de antes voltou, a dor nas costas, a angústia no peito. Ele literalmente se sentiu em outro corpo. Sua mulher o rejeitou com a mesma doçura assombrosa de antes, pediu a ele que fizesse o café. Batalha tentou tocar o violão como no dia anterior, mas seus dedos se atrapalharam no instrumento. Ele não disse nada a ninguém. Apenas viveu com a suspeita de que alguma coisa estranha havia acontecido. Provavelmente, de acordo com sua imaginação mais paranoide, fizeram alguma coisa com ele quando realizaram uma colonoscopia invasiva que demandou anestesia geral. Sua fantasia o leva a acreditar que o clonaram, que fizeram uma réplica de seu corpo.

Ele garante que há dias em que amanhece nesse corpo novo. São dias nos quais aproveita que sua mulher não o rejeita, aproveita para fazer música, nadar. Sente uma expansão vital, uma dispersão de endorfinas e entusiasmo. Acha que sua mulher sabe desse intercâmbio físico que fazem nele, mas não diz nada. Nos dias em que ele está com o corpo anterior, nota que ela fica impaciente, um pouco enojada, como que esperando que chegue a substituição. Batalha amanhece no corpo novo sem nenhum motivo, nem lógica, nem frequência estável. É algo que simplesmente acontece em alguns dias. Por um tempo ele conseguiu aceitar isso sem questionamentos, como um presente. Mas aos poucos começou a sentir o contraste; cada retorno a seu corpo anterior era mais assustador.

Agora ele se pergunta o que fazem com seu corpo original quando ele está no novo. Onde o guardam, como fazem a substituição, quem são os responsáveis e para que fazem isso? Seu corpo é devolvido cada vez mais deteriorado, mais cansado, mais arruinado. Ele aparentava estar muito agitado e nervoso durante toda a consulta. Batalha insistiu em mostrar sua pinta nas costas. Pediu que acreditassem nele. Queria tirar a camisa. Receitaram ansiolíticos, recomendaram terapia para tratar seus delírios paranoides, mas ele nunca voltou.


História contada por Pedro Mairal, na Folha de São Paulo

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