sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Onde, desgraçado?


Esses dias um homem que amei, e que provavelmente nunca percebeu, me perguntou até quando vou escrever sobre as mesmas coisas. "Vai ficar chato se o seu próximo livro tratar do mesmíssimo assunto que o primeiro, lançando há quase 20 anos."

Me lembrei dele se espreguiçando naquele dia, em uma mesa de restaurante que dava vista para uma pia com uma imagem de Buda, e dizendo: "Eu gosto daqui". Você gosta de mim? Ninguém se alonga feliz, como que renovando os contratos entre as vértebras, para um lavabo indiano. Aquela cena. Não foi nada. Mas naquele segundo eu pensei: "Eu amo esse cara". Eu amo o cumprimento milimétrico que ele faz com meio pelo de barba quando me vê em uma festa, o elogio de duas palavras que ele me concedeu uma única vez na vida e como tudo nele é contido e aviltante para o meu derramamento.

Entendo que aos 42 anos eu deveria tentar outros temas. Com essa idade, já deu tempo de violentar meu esterno enfiando à força um abacaxi e cuidar de coisas mais importantes: a educação dos mais novos, a cautela com os mais velhos, o fenecimento diário das excitações e as aplicações financeiras.

Mas como não falar de amor? Se feito Vladimir e Estragon, a miragem de um amor me tornou essa eterna (e, infelizmente, conhecida) histérica em praça pública? Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés.

Como mudar de tema? Se o fantasma do amor, ou esse repetido "não sei" que vem se fantasiando de amor todos esses anos, acenou para mim de tantas janelas e portas e ralos e mensagens de texto (e mais recentemente até de um aplicativo de paquera), e eu fui abestada e descarrilada e toda remendada ver se agora era? Agora podia ser, né? Ah, agora vai que é.

Tenho aí meus colegas escritores fazendo tudo certinho para serem traduzidos e convidados para mesas de debates "urgentes" e ganharem prêmios. Os assuntos-algoritmos que precisam estar presentes na literatura de hoje: luta de classes, luta de gêneroluta para não falar de si mesmo –ou falar apenas se for para pedir perdão. Eu os admiro e invejo, e só não digo que torço por eles porque sou uma filha da puta. Mas há aqui uma obsessiva muito antes de haver uma progressista ou uma escritora ou mesmo uma mulher. E a minha obsessão é encontrar. Onde, pelo amor de Deus? Onde, desgraçado? Eu escrevo para alcançar, dar contorno, trazer, embalar, nomear. Eu escrevo como se jogasse uma corda, uma rede, um pano. Como se mandasse um mapa, um GPS, uma reza. E eu só escrevo para isso.

Na sétima série o Felipe, que tinha crises de angústia quando o colocavam em fila, um dia tocou pandeiro na classe, e esse inferno começou. E eu tive tantos. São 30 anos de amores que duraram meses, alguns anos, uma década, geraram gastrites, casas e até vida. E nunca deixei de acordar todos os dias fazendo piada para espantar a solidão e a agonia infinitas por achar que ainda não era você. Ainda não. Eu vou saber quando for, e ainda não foi. E estou aqui, na coragem brega do assunto batido, na expectativa idiotizada pelo outro lado do cérebro, nos 10% que me restam de um romantismo que ainda dá conta de me deixar devastada como uma adolescente, no suspiro interrompido pelo refluxo, voando com asas de um origami mal dobrado, moldado na ansiedade, enquanto 80% do corpo precisa aterrar em praticidades e cinismos para que o dia chegue ao fim, com tanto medo que tremer já virou uma espécie de tique confortável, mas esperando, esperando, esperando. Não demore porque já deu o tempo, já estou pronta. Eu tenho tanta certeza. Porque, mais do que ser uma obsessiva, eu quero o que todo mundo quer.

Como não escrever sobre o amor?


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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