sábado, 27 de novembro de 2021

Quem tem medo de tubarão?


Eu tinha só 5 anos quando apareceu “Tubarão”, o filme, primeiro megassucesso de Steven Spielberg e a maior bilheteria da história até ser desbancado, dois anos mais tarde, por “Star Wars”.

Claro que meus pais não me deixaram assistir ao filme na época –só fui vê-lo muito tempo depois, em versão dublada e picotada da TV aberta. Mas acabei contaminado pela febre de “Tubarão”.

Cartazes gigantes cobriam as fachadas dos cinemas da cidade –São Paulo tinha muitas salas de rua, principalmente no centro e na região da Paulista. A mesma imagem de divulgação, o tuba com os dentões à mostra, ocupava espaços enormes nas últimas páginas dos jornais.

A televisão exibia reportagens sobre o fenômeno, com toda a tecnologia do robô-tubarão e a brecha para passar algumas cenas do filme em horário nobre.

Para a geração que cresceu nos anos 1970, “Tubarão” foi um divisor de águas. O tubarão deixava de ser peixe para se tornar monstro. Uma criatura a ser temida no imenso desconhecido do oceano. Tomar banho de mar nunca voltou a ser o que era –e essa vai na conta do carma do Spielberg.

No mundo real, ataques de tubarões a banhistas são incomuns. Onde são frequentes, como em Recife, resultam da lambança perpetrada pelos humanos no ecossistema marinho.

Ubatuba, balneário paulista, registrou dois casos recentemente, ambos não-fatais.

Aí o comodoro de uma marina encenou o filme de Spielberg lá em Ubatuba: ofereceu R$ 20 de recompensa por centímetro de peixe, caso lhe trouxessem morto o tubarão responsável pelos ataques. Ou um animal “cujo porte justifique a possibilidade de ter sido o autor dos ferimentos aos banhistas”.

Em “Tubarão”, as coisas desandam de vez quando nativos e turistas se metem a caçar o bicho assassino para embolsar um prêmio em dinheiro.

Precisamos sair urgentemente desse filme.

O tubarão não é um monstro. Nós é que somos uma ameaça para a sobrevivência dos tubarões.

Porque vai tubarão na moqueca, na isca de peixe do quiosque de praia, no ensopadinho do almoço de sexta-feira. Só que aí ele muda de nome.

Funciona assim: quando o peixe come o homem, seu nome é tubarão; quando é comido pelo homem, passa a se chamar cação. Cação é a denominação comercial genérica de várias espécies de peixes cartilaginosos, basicamente tubarões e arraias.

O Brasil produz 20 mil toneladas anuais de carne de cação. E importa o mesmo tanto. São tubarões, em sua maioria, e 40% das espécies de tubarão sofrem risco de extinção devido à pesca e à degradação ambiental.

Curioso, triste e feio é que o pessoal compra tubarão sem saber o que está levando. Cerca de 70% dos consumidores não têm ideia de que cação e tubarão são a mesma coisa.

A indústria da pesca alimenta essa ignorância. O cação é vendido em postas ou picado, nunca reconhecível e jamais com as barbatanas (é a parte mais valiosa, reservada para os chineses).

Em resumo, o homem é o tubarão do tubarão. Ou: o tubarão é a moqueca do homem.


Texto de Marcos Nogueira, em seu blogue Cozinha Bruta, na Folha de São Paulo

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